sábado, janeiro 28, 2006

Cantar Fado

“Tua voz é como um violoncelo triste.”

Não me recordo de ter ouvido a meu respeito uma frase tão apropriada.

Salaam
Layla

Meu coração, por Zeca Baleiro

Fragmento I

"Não dá pé, não tem pé, nem cabeça
não tem ninguém que mereça
não tem coração que esqueça
não tem jeito mesmo
não tem dó no peito
não tem nem talvez ter feito
o que você me fez desapareça
cresça e desapareça
CRESÇA E DESAPAREÇA
CRESÇA E DESAPAREÇA

Não tem dó no peito
não tem jeito
não tem ninguém que mereça
não tem coração que esqueça
não tem pé, não tem cabeça
não dá pé, não é direito
não foi nada, eu não fiz nada disso
e você fez um bicho de sete cabeças
bicho de sete cabeças
bicho de sete cabeças..."

(Bicho de Sete Cabeças)


Fragmento II

"Oh sim, eu estou taõ cansado
mas não pra dizer
que eu não acredito mais em você
(...)
Ando tão à flor da pele
que qualquer beijo de novela me faz chorar
Ando tão à flor da pele
que teu olhar flor na janela me faz morrer
Ando tão à flor da pele
que meu desejo se confunde
com a vontade de não ser
Ando tão à flor da pele
que a minha pele tem o fogo do juízo final

Um barco sem porto
sem rumo
sem vela
cavalo sem sela....
Um bicho solto
um cão sem dono
um menino-bandido
Às vezes me preservo,
noutras, suicido."

(À flor da pele)


Santa Sara Kali, você que compreende o que é ser uma mulher à margem... Protetora dos proscritos, dos incompreendidos, dos esquecidos. Protetora daqueles que não se encaixam a este mundo cinza. Protetora daqueles que, na dor, balançam guizos, e tocam pandeiros e violinos. Como resposta. Como afronta. Como centelha de viver, como diria Clarice Lispector.

Também esta será minha resposta. Vou balançar, plena de dor, os guizos e os pandeiros. Rodopiarei com a melhor saia, jogarei os cabelos ao vento, e serei protagonista da dor-felicidade-sonho-possibilidade que vivencio. Sorrirei para os quatro cantos do mundo como quem diz: "Você vê? Eu não morri. Eu vivo. E estou mais bonita, mais forte e mais mulher que antes. E você... Você vive, ainda? Vive-se com covardia? Ora, covardia é morte-vida. Você, que matou o leão e agora tem medo do couro... "

Ah, Santa Sara Kali, também eu cubro minha cabeça por respeito e gostaria de depositar o lenço aos teus pés... Protetora dos proscritos. Protetora das mulheres que ninguém compreende.

Salaam
Layla

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Love is Strong

"What are you scared of, baby
It's more than just a dream
I need some time...
We make a beautiful team
...A beautiful team."

(Rolling Stones)


Salaam
Layla

terça-feira, janeiro 24, 2006

Da sensação de pertencer

Trago em meus olhos as marcas da identidade, do pertencer a algo, do sentir-se parte. Nos olhos negros de tanto olhar a noite, nos cabelos negros de céu sem lua, nos quadris largos e soltos, feitos para dançar e para parir. Nas sobrancelhas irregulares, na passionalidade exacerbada. Não nasci no Oriente Médio. Mas tenho aqueles olhos que denunciam minha origem.

Parece que quanto mais tempo passo longe desse universo, definho como uma planta sem água. Quanto mais tempo longe dessa língua, entristecem-se meus ouvidos, com saudades das belas palavras, quase num cantar. Quanto mais tempo longe do som que as mulheres fazem com a língua convidando à dançar, menos doces são os dias, e é como se a vida fosse desinteressante e desapaixonada.

Houvesse companhia, hoje eu dançaria um dabke como nunca dancei. Hoje eu colocaria uma flor nos cabelos, amarraria um lenço à cintura e arriscaria os pulos que gosto de fazer. Hoje eu desejei segurar as mãos de outras pessoas como irmãos, e entrar na roda onde todos batem os pés no mesmo ritmo, celebrando a união e fazendo o mundo ter continuidade, e a vida ter sentido. A roda que levanta a poeira da terra e faz os antepassados que já se foram sorrirem, felizes. A roda que torna todos iguais: mãos unidas, vozes unidas, sangue guerreiro falando alto. Orgulho dos homens, orgulho das mulheres: a sensação de pertencer.

Sou uma mulher do deserto. Uma mulher a quem bastam as noites plenas do cintilar das estrelas, a bailar ao redor do crescente da lua, e um chão firme onde se possa fazer a roda. Uma mulher de olhos grandes e negros, de coração indomável e de quadris feitos para dançar e para parir.

El wardi sahbi...
Qalli 'ala haga
N'harda wa fil-layl...
El wardi sahbi...
El wardi sahbi,
Qalli 'ala haga.
N’harda wa fil-layl
N’harda wa fil-layl...

(Natacha Atlas)

Salaam
Layla.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Hino dos Comedidos

Não me agradam esse homens
bem fracionados no tempo,
cedendo-se amavelmente
em todas as ocasiões
e mais também não me agradam
os partidários tão vários,
de toda moderação.
Vou passando bem distante
desses homens comedidos
deses homens moderados.

Antônio guarda seu vinho
muito mais de vinte anos
para bebê-lo mais velho
Clara não estréia o vestido
quer outra oportunidade.

Os noivos em castidade
bem além de doze anos
ainda apregoam o amor.

Os homens de ferro hoje
só sabem anunciar
uma mensagem de espera.
Aguarda a felicidade,
Vê o momento oportuno,
Não penses nunca em amor
Nem sejas tão ansioso,
resiste à melhor viagem
desconhece a emoção.

O hino dos comedidos
de todos bem fracionados
a humanidade invadiu.
Desejam oportuníssimos
Sempre expelindo relógios
aguardam os melhores instantes
subdivididos em prazos
doutrinam sincronizados
Sofrendo convencionais
Apenas grandes tristezas
Creditadas nos jornais.

Eu? Eu já sou diferente.
Não sei viver minha vida
entoada nesse hino
Esterelizada em prazos
De regras universais.
Não me situo na espera
E por profissão de fé
Acredito em circunstância
Acredito em vida intensa,
Acredito que se sofra,
mesmo muito, por amor.

Adeus homens moderados,
Adeus que sou diferente.
Compreendo a mulher que rasga
as vestes em grande dor
e sinto imensa ternura
pelo homem desesperado.

(Lupe Cotrin)


Ah, esse mundo. Esse mundo amorfo, comedido, assexuado e normopata... Esse mundo intrigante que produz monstros, e também pessoas com o teu olhar.

Ah, esse teu olhar. Que naufrágio.

Salaam
Layla

domingo, janeiro 22, 2006

O seu abraço

Há um pedaço entre mim
e o resto do mundo
que só seu abraço completa

O seu abraço não me dá esperanças especiais
nem certezas absolutas

O seu abraço
me dá idéias, meu amor.

(Maria Aparecida Miranda)


Salaam
Layla

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Das flores que rompem o asfalto

Eu sou uma pessoa feliz. Nunca pensei que fosse afirmar isso com tanta propriedade um dia. Pela primeira vez, dou-me o direito de administrar essa pequena porção de felicidade sem medo algum. Sem medo do tombo, sem medo do que pode acontecer depois. Por muitas vezes eu trouxe obrigatoriamente meus pés de volta ao chão, alegando que isto seria mais sensato, mais inteligente e mais interessante que manter a cabeça em nuvens. Hoje, não consigo ser diferente: eu própria sinto o gosto das nuvens em minha boca, e vi que isso é bom. Pela primeira vez, ainda que meus pés toquem o chão, o gosto de nuvem persiste.

Sou feliz porque aprendi a viver honestamente. Aprendi a expor o que há de melhor e o que há de mais assustador em mim. Sou feliz por ter percebido que há momentos em que esta é a única atitude possível. Sou feliz porque arco com as conseqüências do que é fato. Arco com tudo aquilo que implica ser a mulher que sou. Sou feliz porque não me arrependo. Porque não quero ser diferente.

Sou feliz, sobretudo, porque acredito em milagres. Daqueles milagres que ocorrem aos montes, e nos quais ninguém presta atenção. Sou feliz pela lua branca, de beleza quase ofensiva, a engolir-me, a conversar comigo, enquanto passa a brisa na sacada. Sou feliz pelas estrelas que me olham de cima. Sou feliz porque consigo conversar com elas, e ouço o que elas respondem.

Sou feliz porque acato com o coração as surpresas da vida. Porque não as questiono. Porque quero sorver até a última gota desses gratos momentos inesperados. Clarice Lispector, certa vez, escreveu: "Mergulhe fundo como mergulhei. Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa qualquer entendimento". Sou feliz porque, hoje, entendo o que isso significa - e o significado é de uma doçura inefável.

Sou feliz porque as flores continuam nascendo.

"Passem de longe bondes, ônibus, rios de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios
garanto que uma flor nasceu.
(...)
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio."

(Carlos Drummond de Andrade)

Salaam
Badawya

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Serenata

Oh! Lua branca de fulgores e de encantos
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo
Vem tirar dos olhos meus o pranto
Ai! Vem matar esta paixão que anda comigo.

Ai! Por quem és, desce do céu, oh! Lua branca
Essa amargura do meu peito... Oh! Vem, arranca
Dá-me o luar da tua compaixão
Oh! Vem, por Deus, iluminar meu coração.

E quantas vezes lá no céu me aprecias
A brilhar em noite calma e constelada
A sua luz, então, me surpreendia
Ajoelhado junto aos pés da minha amada.

E ela a chorar, a soluçar, cheia de pejo
Vinha em seus lábios me ofertar um doce beijo
Ela partiu, me abandonou assim
Oh! Lua branca, por quem és, tem dó de mim!


Assim terminava a música de Chiquinha Gonzaga. Os transeuntes aplaudiam os músicos em trajes dos anos 30, acompanhados de violão e uma flauta transversal. Era tão doce, e era para mim. Era à minha janela, e não em qualquer outra janela. Era tão lindo. Quem me conhece sabe que adoro essa música, e que sonhava em ouvi-la um dia, assim: numa serenata às dez da noite, no meio da rua, com olhos de flor. Violão e flauta transversal. E era para mim.

Eu, a desengonçada, a sem jeito. Eu, que quando estou com as amigas, sou “aquela com cara de turca e pano na cabeça”. A diferente, a que os meninos, na adolescência, queriam como melhor amiga, e nunca namoravam. A que dá conselhos, e não beijos. Eu.

Mas era para mim. Era para mim, para me lavar a alma, e dizer: “Ei, estás viva!”. Era para mim, para que eu fosse tocada pelas notas, para que elas penetrassem minha alma como adubo na planta seca. Era para mim, para que meus olhos negros contemplassem e para que meus ouvidos fossem tingidos de otimismo. Era para transformar a rosa negra em girassol.

***

Abri os olhos. Já era alta noite. A brisa noturna me acariciava o rosto na janela. Volto à realidade.

Quem sabe um dia a cena se repita de novo. Mas desta vez na calçada, e não apenas em minha mente.

Apesar de tudo, não é melancolia. Algo em mim se ilumina: há esperança. Algo em mim sabe que é possível. Algo em mim compreende o que razão desconhece.

Salaam
Layla