sexta-feira, junho 15, 2007

Das letras que cintilam


Eu, que me acostumei a viver à sombra da melancolia, que me acostumei a olhar de dentro todos os abismos possíveis e a eliminar a conversação com qualquer forma de esperança; eu que me acostumei a parir palavras tão amargas quanto o pior remédio, na ânsia de curar uma insônia perene e uma fome do amor nunca sentido. Eu, que tantas vezes peguei a caneta para fazer com que a tinta cantasse um fado num papel que me olhava como se visse em mim o que há de pior. Eu, que passei quase três décadas amontoando descontentamento, assisto atonitamente o nascimento de palavras novas, como o espectador do pôr-do-sol mais belo de um verão rosáceo. Como se as palavras que hoje me vêm à boca, e às mãos, que escrevem, fossem tomadas de uma luminosidade supreendente, como aquela que acende inesperadas cores nas lanternas chinesas de papel, como disse Mário Quintana. Uma luminosidade que não sei dizer de onde vem, mas que ilumina estas palavras e esta casa; uma luminosidade que atravessa quilômetros de distância, uma luminosidade que se dispersa num prisma que tinge de cores as paredes outrora cinzas. Arrisco-me a dizer que a luz que invade estas palavras vem dos teus olhos escuros, dos quais paradoxalmente emanam todas as cores que sei distinguir.

Ana bhibak
Layla

Imagem de Shark, disponível em charquinho.weblog.com.pt/arquivo/2006/09/index0

(Para quem quiser ler, o poema de Quintana citado aqui chama-se "Eu queria trazer-te uns versos muito lindos", e está disponível, entre outros lugares, em: http://www.releituras.com/mquintana_menu.asp)

sábado, junho 02, 2007

Do momento de despertar


Em minha vida, há uma série de momentos que, se fosse escrever uma autobiografia, eu agruparia num capítulo referente à escolha de meus caminhos na Psicologia: “Por que me tornei junguiana”, rs. O próprio Jung não desejava que ninguém se dissesse “junguiano”, mas serei obrigada a fazê-lo por razões estritamente sentimentais – e meu amor pela obra desse velho simpático é imenso.

Hoje tenho um grande relatório para iniciar, mas tenho vontade de protelá-lo por um momento, apenas para vir até aqui contar uma história. Não sei porquê, deu-me na idéia de dividi-la com os outros. É uma de minhas primeiras histórias de amor: o amor pelos livros – sobretudo, o livro que narrava a fábula da Bela Adormecida.

Com três anos e meio de idade, fui alfabetizada por meu avô, numa mistura de espanhol com português. Quando eu tinha por volta de sete anos, já sentia muito gosto pela leitura. Na escola, queria devorar com os olhos quaisquer letras que pudesse, passava tantas horas quanto me fosse possível a escrever. Uma prima querida, que na época era sócia do Círculo do Livro, a cada mês me dava um livro de presente. Aquele era o melhor momento de minha vida. Os primeiros presentes foram três livros lindos, grandes, de capa dura, com publicações da Disney: Os 101 Dálmatas, Bambi e A Bela Adormecida. Por este último, meu amor era especial. Algumas vezes, eu dormia abraçada a estes três livros, como a vigilante atenta de um tesouro precioso.

Quanto eu estava para completar sete anos, nasceu minha irmã. No afã de suprir as necessidades da pequena, todos – eu disse TODOS – os meus brinquedos foram dados a ela. Como era ainda muito miúda e não sabia brincar, ela destruiu, sistematicamente, tudo o que eu havia juntado a vida inteira: as bonecas, as panelinhas, os jogos. As bonecas, me lembro, acabaram destroçadas, rabiscadas com caneta, tinham arrancados seus cabelos. Uma cena desoladora para quem tanto cuidava de suas coisas. Entretanto, uma coisa eu preservava: os livros. Aqueles, ninguém me tomaria. Eu os defenderia como pudesse. Obviamente, por serem guardados com tanto afeto, eram o que mais despertava a curiosidade da menor, que os pedia aos meus pais insistentemente.

Foi assim que, um dia, ao chegar da escola, indo ao encontro de meu tesouro o encontrei em pedaços. Cuidadosamente colado por minha mãe, é verdade. Ela passou fita adesiva no livro inteiro, como se aquilo fosse evitar meu choro desesperado ao ver partidas as figuras que eu havia aprendido a amar. Alguém entregara à minha irmã meus livros. Alguém entregara a uma criança de dois anos de idade os meus sonhos, meu porta-jóias de palavras perfeitas, meu depositário de devaneios solitários em meu mundo de criança só. Eis o primeiro luto de minha vida: o primeiro tesouro perdido.

Cresci. Em momentos cruciais de minha vida, infância afora, adolescência afora e mesmo adulta, eu costumava, em crises emocionais, sonhar com a imagem dos livros despedaçados. E era uma imagem muito forte e peculiar. Eu jamais esqueci o vestido da princesa que dormia, o rosto do príncipe, da bruxa – que era belíssima – e das três fadinhas. Jamais esqueci. E nunca os vi novamente.

Dezoito anos depois do ocorrido, quando eu estava no segundo ano da faculdade de Psicologia, tive uma disciplina que foi meu primeiro contato acadêmico com a obra de Jung. Meu professor, na época – hoje, meu terapeuta – um dia nos propôs fazermos, em sala, análise de contos de fada. Para ilustrar, ele trouxe uma fita de vídeo muito antiga. Assim que iniciou-se o desenho, algo se moveu dentro de mim.

Dezoito anos depois, eu estava ali, diante dos mesmos desenhos outrora rasgados, tornados em pedaços. As figuras, idênticas, tão antigas quanto meus livros, ressuscitavam diante dos meus olhos – mais vivas ainda que antes: antes só eram livros, estáticas, petrificadas. Agora eu as via se mexendo, dinâmicas, sorridentes, a contarem a história não só para os olhos, mas também para os ouvidos. A Bela Adormecida tinha voz, e cantava, e o príncipe falava, e a coruja falava, e eu via as fadas que imaginei voando, voarem de fato. Aquilo foi demais para meus olhos – meus grandes olhos ocres, transformados, naquele momento, em olhos de criança: os olhos da criança que via ressuscitar seu tesouro, um tesouro em movimento, um tesouro que dançava.

Não pude suportar esta cena. Comecei a chorar muito e saí da sala. Em prantos, entendi o que acontecia. Era uma grande vivência simbólica. Não era o peso de um filme infantil em si, mas o que ele representava para minhas retinas, pois ele as atravessava e imprimia-se direto em minha alma. Aquilo era uma mensagem do self – só agora eu compreendia como, de fato, ele fala conosco – que dizia: o tesouro nunca foi partido. O tesouro é teu. Dezoito anos depois, e pela vida toda, a Bela Adormecida é tua, ela nunca se partiu.

Chorei, chorei e chorei para lavar o peso de todos esses anos. Era a vida me dizendo: o que em ti é bom jamais será partido, esfacelado. Era como se eu me descobrisse inteira, como se eu existisse para além daqueles livros, como se eu fosse de todos os livros que ainda havia por ler. Era como se eu pudesse olhar para os olhos da menina diante do livro rasgado e lhe dissesse: agora podemos ser gente grande. Agora podemos acordar também.

Talvez esse seja o motivo pelo qual tenho grande paixão por contar histórias para crianças. Acho que vejo nos olhos delas os meus olhos de menina refletidos.

Salaam
Layla

Imagens:
Bela Adormecida: http://www.disney-vacation-time.com/img/sleeping-beauty/sleeping-beauty-3.jpg
Aurora capesina: http://scoop.diamondgalleries.com/scoop_article.asp?ai=10169&si=123