quinta-feira, julho 24, 2008

Quando sorri para Buenos Aires

Em janeiro deste ano, quando cheguei a Buenos Aires, eu sorri para ela. E ela sorriu de volta. E eu descobri o que é aquela coisa que as pessoas dizem que existe, a certeza de se pertencer a um lugar. Lembro-me de que meus olhos examinavam atentos a tudo o que podiam engolir. Tudo, tudo, tudo tatuava-se em minhas retinas e cada rua fingia me conhecer desde criança, dizendo-me, no ouvido: por que demoraste tanto a voltar? Não, eu nunca tinha estado lá. Mas as ruas juravam me conhecer. As ruas sabiam de mim, conheciam meu olhar.

Jurava me conhecer aquela avenida Corrientes, onde todas as madrugadas, da sacada do último andar de um hotel muito antigo, eu observava os transeuntes, os carros, a felicidade que emanava de minha janela. Aquele hotel onde os porteiros, senhores de idade, passavam a noite a ouvir no radinho de pilha a rádio local que toca apenas tango. Aqui no Brasil, seria como encontrar nos prédios velhos do Rio os senhores simpáticos que, a despeito da modernidade decadente, só pensam em ouvir Nelson Gonçalves.

Jurava me conhecer o bairro de La Boca, o lugar mais fantástico onde já pisei, nesta vida. Com suas ruas tortuosas e suas casas coloridas. Cada rua me assistiu fazer amizades, cada rua me assistiu andar de mãos dadas com a pessoa que me fez encontrar significado nas maiores e nas menores coisas. Em La Boca, lembro-me da cena de um amigo tocando violão. Ao fundo, uma porta, um corredor. Mais ao fundo, a mulher que estendia roupas. Mais à frente, entre as mesas, o cão que escapava da casa e andava entre os transeuntes. Ali tudo era de verdade, os bailarinos eram gente simples. O bandoneonista, com seus olhos azuis de mar adriático, fatalmente tivera ancestrais vindos da Itália. Nunca, em minha vida, ouvi alguém tocar um bandoneon como aquele senhor simpático.

Cada minúscula rua estreita me é uma pequena lembrança, cada esquina. Cada nuvem de céu escuro sobre o teatro Colón, assombrosamente iluminado pela curiosidade do meu olhar. Cada bom dia que dei, cada obrigado. As noites inesquecíveis onde rapazes jovens se reuniam para tocar tango e manter viva a tradição dos avós. O rapaz que cantava com a pungência de um velho de oitenta anos a lamentar o passado. O violonista que fazia do instrumento a extensão de si mesmo, daquilo que havia dentro de si, de seus amores e perdas, de seus dolorosos pesares e de suas quimeras. O rapaz cego que cantava um repertório tão primoroso e sensível que fazia a cada um lembrar-se de suas raízes, de sua infância, da voz dos pais na cozinha, do primeiro amor.

O amor, também vivia eu. Buenos Aires não seria a mesma, e as casas de La Boca não seriam coloridas como foram, não fosse eu andar entre elas de mãos dadas. Hoje, a sala de minha casa acostumou-se, todas as noites, a aquietar-se ao som de Carlos Gardel. Aquieto meu coração nas notas quebradas dos bandoneons. Eles falam de mim como se eu fizesse parte deles. Como se eu fosse uma de suas notas. Eles conhecem o meu ritmo, e o lugar onde devo estar para que a música seja feita.

Quando cheguei a Buenos Aires, descobri o que é a certeza de pertencer a um lugar. A mesma sensação de pertença que eu senti ali nos bancos da velha estação de trem abandonada, em minha cidade natal, quando eu conheci aqueles olhos que um dia me fariam conhecer Buenos Aires. E o Amor.

Salaam
Layla
Imagens: Em cima, Teatro Colón. E meus olhos. Embaixo, o Caminito, em La Boca.