domingo, abril 23, 2006

Curando dores de estômago

Eis o melhor e o pior de mim
O meu termômetro, o meu quilate
Vem, cara, me retrate
Não é impossível
Eu não sou difícil de ler
Faça sua parte
Eu sou daqui, eu não sou de Marte
Vem, cara, me repara
Não vê, tá na cara, sou porta-bandeira de mim
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular
Em alguns instantes
Sou pequenina e também gigante
Vem, cara, se declara
O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder
Olha minha cara
É só mistério, não tem segredo
Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular

("Infinito Particular", Marisa Monte - a mim apresentando pela querida Mirka )

Era isso o que estava preso, aqui, na garganta.

Salaam
Layla

Sobre o não-dito

A moça cabisbaixa na sala, na tarde de domingo, retoma o pensar sobre a própria vida. Agora compreende o porquê de sua dor de estômago: “ando engolindo coisas demais”, pensa.

Ela apenas queria entender por que tem se sujeitado a engolir tantas coisas. Tantas coisas lindas, que mereciam ser ditas, e que são empurradas garganta abaixo, para que ninguém saiba que existam.

Lembra-se daquele dia, naquele bar. Todas as suas amigas diziam: “nossa, como hoje ele está radiante, como está bonito!”. À sua boca, vêm as palavras: “ele é lindo todos os dias, vocês é que não reparam... Eu reparei nisso desde a primeira vez... E sempre em silêncio...”.

Mas a moça mastiga, mastiga, e as engole. As engole, junto com tantas outras, que não foram ditas naquele dia. “Teus olhos estão mais brilhantes que nunca”; “teu sorriso são asas de borboleta”, e mais duzentas e setenta e três frases permeadas por seus únicos sentimentos nobres, são engolidas, mastigadas, emudecidas. Os sentimentos pairam no ar, mas invisíveis, velados...

Ela queria poder olhar nos olhos e dizer, calmamente: “eu queria segurar as tuas mãos...”. Talvez, como segurasse um par de conchas onde residem as pérolas que procurou durante toda a vida.

Sentiu um frio imensurável. E temeu que apenas aqueles braços distantes pudessem ter o tamanho exato para abrandar esse frio.

“Por que é que tenho que sentir frio, e sentir frio, e sentir frio... Quanto tempo ainda vou sentir frio, na tua frente?”, pensou, ouvindo uma canção irlandesa, enquanto segurava o coração com as mãos.

Slán
Layla

segunda-feira, abril 17, 2006

Min Zaman

Ela gosta de ouvir, todos os dias, antes de dormir, uma canção em sua língua preferida. Normalmente, uma daquelas canções de amor, que gosta de escutar à janela, como se esperasse alguém que vai chegar.

Min zaman... Min zaman...

Lesh...

Lesh...*


...suspira o cantor, em árabe, em uma daquelas ladainhas que ela adorava, aquele jeito dos seus, de cantar, de falar, de sentir.

"Faz tanto tempo...", ela repete.

Já faz tanto tempo...

(...)

Salaam
Layla.

*"Faz tanto tempo...
Faz tanto tempo.
Por que? Por que?...".

("Min Zaman", George Abdo).

Porta-jóias

Antes de dormir, embeleza-se. Passa duas gotas de perfume, e veste as jóias preferidas. Abre a caixa onde as guarda. Quase um relicário. Retira dali as lembranças com as quais adorna-se profundamente. E era assim que coisas minúsculas, pequenas, fugidias, assaltavam-lhe os pensamentos.

Lembrou-se daquela vez em que ele partiu, e que ela esperou que ele voltasse. Ela não sabia o que poderia acontecer. Mas passou os dias pensando nele como uma beduína que aguarda a caravana que passa às quatro da manhã. Lembrou-se de olhar as estrelas todos os dias, e pensar: “onde será que ele está agora?”, antes de adormecer. Lembrou-se da saudade, e do que vem depois da saudade: o gosto de nuvem dos reencontros, que tinge momentos de cores vivas, e faz com que eles se destaquem do resto da vida, ganhando relevo. É assim que, olhando-se a vida de longe, eles aparecem nítidos. Mais altos que os outros instantes, mais coloridos, numa topografia peculiar. No álbum de memórias, vê-se esses momentos mais facilmente. Eles se mexem, eles conversam, têm vozes e ecos, e sente-se neles o perfume.

Lembrou-se do reencontro, e de como, ao vê-lo, sorriu-lhe com lábios de asas de borboleta. E foi a primeira vez em que seus olhos negros ficaram translúcidos, e dispararam faíscas que cegaram todos ao redor. E foi a primeira vez que ela teve vontade de que uma noite não se acabasse. E de que a vida não se acabasse. E de que o afeto não se acabasse.

Acabaram-se os três. Aquela noite, aquela vida, aquele afeto.

Fecha o porta jóias. Guarda dentro dele todas as pequenas lembranças. Suas relíquias. “Quem disse que eu não te tenho comigo?”, pensa.

Todas as noites, ela se embeleza para dormir. Como se vestisse lindas jóias, cobre-se das lembranças, e adormece numa nuvem de sonho, abençoada quimera, redoma de névoa que ofusca o vazio e a solidão.

Salaam
Layla

sexta-feira, abril 07, 2006

...

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.

(Carlos Drummond de Andrade, fragmento de “Quadrilha”).

Rasga-me as entranhas uma sensação terrível de impotência. De frustração. De desamparo. De solidão. De falta de perspectivas. De desimportância.

Desimportância.

Frio caco de vidro, translúcido e cortante.

(...)

Algumas pessoas nascem para princesas, outras para bobo da corte. Eu nasci para bobo da corte. Cá estou eu, bolinhas em mãos, a entreter a todos com mil acrobacias. Bolinhas em mãos, guizos na roupa e uma eterna cara de imbecil.

Quem é que se ocupa da dor do palhaço, quando ele desce do palco?

(...)

Salaam
Layla

quarta-feira, abril 05, 2006

Sky hung with jewels













“Under blue moon I saw you
So cruelly you kissed me
Your lips – a magic world
Your sky – all hung with jewels...”

(Echo and the Bunnymen, “The Killing Moon”)


A moça olhava para o céu. Ele também a fitava com seus muitos olhos cor de diamante. Ela sabia que o brilho das estrelas que enxergava viajava anos-luz até chegar à Terra e que, talvez, as estrelas ali contempladas já nem existissem mais. Necessariamente, olhar o céu era, então, olhar para o passado. Olhar para aquilo que acabou.

Uma metáfora para si mesma. Pôs-se a pensar no ciclo da vida-morte-vida que é o amor. Esse ciclo que fazia tantas coisas germinarem, e também as ceifava de forma inexorável, deixando apenas o gosto de morte das grandes saudades.

O céu se mostra pendurado de jóias. Cristais diminutos pendem como num móbile. A moça se lembra da última vez que havia olhado para o céu. Estava diante de uma linda constelação, que ele havia lhe mostrado, apontando com o dedo.

- Escorpião.

Desde criança era afeta às estrelas. Lembra-se de fugir das brigas familiares, escondendo-se num cantinho do quintal, de onde olhava para o alto, e eis que o céu se desenhava. Queria evadir-se, aproveitando-se da carona de aves migratórias, como o Pequeno Príncipe. Queria estar entre aquelas estrelas, conhecer novos planetas. Talvez algum planeta minúsculo, habitado por uma criança loura, que cultivava com paciência e total devotamento uma rosa que havia, definitivamente, lhe arrebatado o coração.

Tantos anos se passaram, e ela estava novamente diante daquelas estrelas, com o mesmo sentimento de desejo. Entretanto, havia algo diferente no brilho delas. Parecia que hoje cintilavam menos que antes; parecia que emanavam uma luminosidade empobrecida.

Pudera. As estrelas eram, todas, ofuscadas pelo brilho dos olhos de mar. Um mar que se balançava entre os olhos de noite dela, e o céu risonho. Aquele mar onde ela desejara, tanto, naufragar, e não pôde. Olhar os olhos de mar era, necessariamente, olhar para o passado. Olhar para aquilo que acabou.

Chegou a pensar que não seria necessário procurar um planeta minúsculo com pequenos vulcões e brotos de baobás para encontrar o Pequeno Príncipe. Fitou os olhos de mar e pensou tê-los ouvido dizer: “desenha-me um carneiro?”.

O Escorpião estático, no céu. Seus olhos o fitaram, percorrendo anos-luz de distância.

“Quem nasceu para raposa, nunca chegará a ser rosa” – chorou escondida.

Salaam
Layla