quinta-feira, setembro 27, 2012

Do meu melhor - ou mais um bilhete

E então eu acrescentava a farinha, depois de dissolvido o fermento no leite morno...

A manteiga, o sal, o açúcar. E mexia tudo delicadamente, com as pontas dos dedos, os dedos cobertos de fuligem branca. Encorpava com mais farinha até dar o ponto, polvilhava a mesa e ali, sob minhas mãos, a massa ia nascendo, forjada em amistosa e suave violência. Depois, um tempo para respirar, "que massa é que nem gente: se não respira, endurece"*. Eu fumava um cigarro, depois picava as cebolas, depois desencaroçava as azeitonas suavemente na palma da mão, como me ensinaram. Picava tomates em pedaços miúdos; os tomates, eu sempre pensei, são corações, pois cortados ao meio, têm quatro câmaras... Misturava à carne isso tudo, botava a carne para curtir no limão, ela ficava lá, absorvendo os temperos, o zatar, o sumac.

Que eu sei que quando ficar velha, serei uma velha árabe que faz setenta esfihas em uma hora. Que quando ficar velha, saberei qual foi minha obra-prima nesta vida. Não foram as duas faculdades, um mestrado - quiçá, terei feito ainda um doutorado, e sabe-se mais o quê. Nada disso. O que sei fazer de melhor é enfarinhar as mãos, fazer as esfihas que servirei no homus que eu preparei antes - ardido como nunca, quase duas cabeças de alho lá dentro, limão ao ponto do insuportável, e este era meu homus, era aquele que quem comia tinha vontade de correr três dias, eu já avisava.

Minha obra-prima em vida não são os livros que li. E li boa quantidade. Até morrer, terei lido mais ainda. Nada disso. Meu melhor legado terá sido a forma como alimentei, e como amei aos meus. O que sei fazer, a melhor especialidade, é esperar-te com este chá de jasmim, esse café com cardamomo. E ouvidos. Ouvidos de ouvir. Coração de escutar. Olhos de não conhecer calendário, porque para eles o tempo não existe. Aconteça o que acontecer, a massa será sovada, a farinha chamuscará minha roupa, minhas unhas ficarão brancas, o chá será servido, há hortelã na geladeira, vou colocar no suco, os assados estarão cheirando, o forno tornará os dez graus da noite mais brandos, meu coração tornará o mundo suportável, porque, aconteça o acontecer, e não me importa teu desamor, eu acordarei e te cobrirei quando estiver frio.

Ana bhibak,
Layla.

(Ao som de Anouar Brahem, "The astounding eyes of Rita", do álbum homônimo dedicado a Mahmoud Darwish).



(*Para compreender melhor esta frase, recorrer a um grande filme, obra de indizível delicadeza: "Histórias que só existem quando lembradas", direção de Júlia Murat, 2011).

quarta-feira, setembro 26, 2012

Um terceiro bilhete

No último cigarro do dia, à janela, assombra-me minha teimosia.
Essa obstinação que persiste mesmo num cenário desértico. 
E isto é herança árabe. Sobreviver no inóspito.
Arrancar o sustento dentre as pedras. 
Comer frutas secas e leite que azedou, transformá-los em iguarias. 
São teimosos.
Assim como eu, porque sou uma deles. 
Assim como eu, que reluto em te enterrar, em te alijar dos meus olhos,
mesmo neste cenário desolador que é a
fatídica condição de não-amor.

Teimo em nascer todos os dias,
mesmo que essa falta venha me ferir de morte, 
todas as noites.  

Por esperança e teimosia
continuo recebendo da vida meu direito de respirar. 

Ana bhibak 

Layla

terça-feira, setembro 25, 2012

Um segundo bilhete

Em todas as madrugadas, me alimento do teu rosto, do som da tua voz, dos cachos dos teus cabelos. De cada imperfeição na pele, de cada cicatriz, das tuas tatuagens. Em cada madrugada me alimento da tua argúcia, do teu vocabulário ora cheio de rancor, ora cheio daquele mel quase translúcido em que se mergulham os doces árabes. Da tua ambivalência. Dos teus porões obscuros e da tua luminosidade, me alimento. Me alimento da sensação dos teus pés enroscados aos meus.

Esteja você presente ou não, são as tâmaras dos teus olhos que abrandam meus infernos, em todas as circunstâncias. Das tuas mãos vieram as romãs do meu Hades. E agora já não posso partir. Já não quero.

Salaam
Layla

quarta-feira, setembro 19, 2012

Bilhete

Amo-te de desespero e urgência,
(Frida Kahlo por dentro,
Monet, na aparência).

Salaam
Layla