domingo, outubro 22, 2006

Dos caldeirões

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

(“Casamento”, Adélia Prado. In: “Poesia Reunida”, Ed. Siciliano - São Paulo, 1991, pág. 252.)


Hoje quem escreve é a mulher cansada de Freud. Cansada da psicanálise e da busca de consolo em teorias lógicas e racionais. Cansei-me de achar que o pensar me livraria de toda a angústia de meus sentimentos. Cansei de acreditar que uma boa bagagem intelectual me seria remédio para as chagas sentimentais do desassossego e da urgência. Cansei de tudo. Quero hoje, apenas, ajudar a limpar os peixes.

Quero hoje preparar o jantar com ervas que me inundem a casa e o coração de aromas, que façam se desenrolar no ar o cheiro da casa espanhola dos avós. Quero poder pensar que, assim como minha bisavó, e minha avó, e minha mãe, estou aqui a cozinhar e a frutificar o mundo com a comida saída de minhas mãos, com as palavras saídas da sabedoria que não colhi em livros, com os filhos paridos por meus quadris largos de mulher moura. Quero hoje curar a dor de barriga dos filhos com chá de ervas colhidas no quintal. Quero passar o dia à beira do fogão como essas mulheres antigas que me deram genes e corpo, que me deram olhos grandes e cabelos negros: cozinhando com os olhos pintados, com as unhas pintadas, como se dissessem: olhe que sou mulher de caldeirões, e sou tão bela. Olhe que ser mulher de caldeirões é parte de minha beleza.

Outro dia me disse: “adoro quando você cozinha para mim”. Acho que é assim que mais gosto de viver. Ouvindo a vida estalar pelos ares, e vendo o afeto rodopiar junto com a fumaça que sai das panelas.

Salaam
Layla