quinta-feira, abril 24, 2008

Cores de Almodóvar, música de bandoneon.

Eu sou especialista em perder o controle sem perder a fleuma. É assim que sou. Quem me vê de olhos rigorosamente pintados de negro e batom cor de vinho, em cima da pose de mulher altivamente mesopotâmica, não percebe a combustão interior. E, acredite, eu consigo enganar todo mundo, e vou enganar você também. Você vai me dar bom dia, boa tarde, boa noite, como não, madame, fique à vontade. Vai tratar comigo assuntos sérios, cotidianos, falar em psicologês. Eu vou responder a tudo isso.

E ninguém perceberá que, dentro dos meus olhos, há um quadro de Frida Kahlo. Que, dentro de mim, meu coração é pintado com cores de Almodóvar, berrantes, urrantes, lancinantes. Que, dentro de mim, há paixão o suficiente para transformar minha vida no céu ou no inferno que eu desejar. Há tanta coisa dentro de mim, e não recomendo que ninguém se aproxime se não estiver disposto a andar descalço, a comer com a mão e a cometer insanidades cotidianas.

Eu sou insana cotidianamente. Eu não gosto da boa educação das pessoas, da falsa ternura e gentileza. Não gosto das mulheres que não aprenderam a falar um palavrão sequer. Eu até poderia ser diferente. Mas não consigo. Não consigo, pois sou feita de osso de costela, de barro, de sangue, de ovários. Não consigo, pois por mais que queira ser o som de uma flauta doce, eu nasci no minúsculo interstício entre a nota mais grave do violoncelo e a nota mais fugidia de um bandoneon. Eu nasci para ser música, e sou um tango argentino.

Salaam
Layla

Imagem: http://home.scarlet.be/~wds1/tango/im_Tango/00-bandoneon.jpg