sexta-feira, novembro 18, 2011

Das respostas

Às vezes penso nos blogues por assim dizer, "populares", em cujas postagens são deixados dezenas ou até centenas de comentários. Eu considero uma espécie de fortuna ter por aqui às vezes dois, três, cinco comentários que, quando leio, me emocionam. Não raro, meus escritos são paridos entre muitas dores ("há uma gota de sangue em cada poema", não é, Mário de Andrade?). E em cada escrito, normalmente, brotam alguns comentários de pessoas que nunca olharam no fundo dos meus olhos mas que, em minhas dores do parto, se reconhecem. A cada escrito, recebo respostas que não são apenas palavras, são "centelhas de viver", na expressão de Clarice Lispector. Agradeço aos visitantes que deixam essas flores em minha porta. Um mar de estrelas se balança entre o meu pensamento e o de vocês*.

Salaam
Layla

O mar de estrelas, aqui inspirado:

Minhas palavras são a metade de um diálogo
obscuro continuando através de séculos impossíveis.
Agora compreendo o sentido e a ressonância
que também trazes de tão longe em tua voz.
Nossas perguntas e resposta se reconhecem
como os olhos dentro dos espelhos.
Olhos que choraram. Conversamos dos dois extremos da noite,
como de praias opostas. Mas com uma voz que não se importa...
E um mar de estrelas se balança entre o meu pensamento e o teu.
Mas um mar sem viagens.


(Diálogo, Cecília Meireles)

quinta-feira, novembro 10, 2011

Min zaman

Quando quero me lembrar de minha adolescência, tenho recordações de duas cores. Algumas são pura nigredo: sofrimento extremo, humilhação, rejeição e incompreensão. Outras são rubedo: vermelhas, apaixonadas, sanguíneas, vívidas, tão vívidas que parecem ter saído das paletas espanholas de Picasso. Dessas últimas, eu retenho algumas sensações inesquecíveis: os metrôs de São Paulo desembocando na rua 25 de março, a turba revolta que subia e descia a Ladeira Porto Geral como um rio de veias profundas, o cheiro de esfiha quente de zatar do Raful, a primeira máquina de escrever em árabe que vi (eu parecia José Arcadio Buendía, em Macondo, vendo pela primeira vez “o grande invento de nosso tempo”: o gelo*), o cheiro forte de incenso que vinha de dentro das lojas de produtos orientais, o ardor de um pedaço picante de chanclich, as arandelas árabes, de ferro, ornamentadas com aquela geometria mourisca e, sobretudo, a música árabe, meu primeiro registro do idioma que viria a ressoar em meus ouvidos como a voz materna, a voz de uma mãe doce, de uma origem perdida, imemorial, encravada nos ossos.

Na época, cds eram coisas caríssimas e inacessíveis, então a música árabe entrou em minha vida por meio de fitas cassete gravadas de alguma fita que fora gravada de outra fita que por sua vez fora gravada de outra, e de outra, e de outra, que fora gravada do disco original. Elas eram comercializadas em São Paulo e eram caras, então a reprodução maneira viável de obtê-las. Não sei que rumo minha vida teria tomado se não fosse essas fitas terem chegado até mim: todos os dias, a música árabe era minha psicoterapia e meu porto seguro: eu adormecia ao som da voz de George Abdo, que eu não sabia quem era, pois me lembro de que nas fitas gravadas estava escrito apenas: “dança do ventre”.

Mas a lembrança mais feliz de todas é a recordação da primeira imagem de dança árabe que tenho em minha vida, aos 14 anos, eu acho. O primeiro registro dessa arte que se tatuou em minhas retinas de uma forma tão profunda, mas tão profunda, que jamais eu pude me esquecer dele. Veio de uma fita VHS proveniente da casa de minha melhor amiga. Quando vi essa imagem, algo mudou dentro de mim e, finalmente, eu pude entender o que eu era.
Hoje me deparei com esse vídeo no youtube. Esta foi, sem sombra de dúvida, a primeira imagem de dança árabe em minha vida. A bailarina é Suhair Zaki, em alguma apresentação, creio eu, em meados dos anos 70. Para quem não conhece, esta mulher é uma lenda, um verdadeiro ícone da cultura árabe, mas na época, eu ainda não sabia. Não pude deixar de me emocionar ao ver novamente esses movimentos, que me trouxeram de volta aquela adolescente que não sabia nada de si, mas que passava a compreender, naquele momento, de que cores seu coração era feito.



Salaam
Layla

*Quem quiser compreender esta passagem da vida do inesquecível José Arcadio Buendía, ler: Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez.