Do que é roto e maltrapilho
Eis me aqui, agora, em carne viva novamente, e necessitando de um pouco de afago. Sei exatamente o que faço quando encontro alguém assim, "em carne viva". Jamais consigo ser omissa. Sempre ofereço minha agulha e linha, e digo: "vai, vamos costurar". E, caídos que somos, vamos ajudando os outros a se remendar, no "exercício da automedicina", como costumo dizer. Mas, e quando o corte é meu? Acostumei-me a ficar aqui sempre esperando a agulha dos outros...
O fato é que parece que, para mim, é muito fácil acolher o traidor alheio, o pecador alheio, o bandido alheio, e perdoá-lo. Mas, infelizmente, eu nunca consegui acolher o "meu" pecador. Nunca consegui tomar o que tenho de miserável e infeliz e dar a isto a atenção que isto merece. Acho que sempre houve uma menina infeliz querendo atenção dentro de mim, e eu passei a vida buscando a atenção dos outros para ela. Percebo que é hora de pegar esse menina e colocá-la em meu colo. Pegar o que tenho de defeituoso, de infeliz, e dar um pouco de atenção. Assim como, até mesmo em minha profissão, meu dever é dar atenção à infelicidade dos outros. Preciso me escutar também. Da mesma forma como não desejo que apedrejem meus queridos, não posso permitir que façam isto comigo. Preciso cuidar de mim. Me costurar. Tarefa árdua e solitária, tarefa de eremita. Porque é só minha.
Só eu sei o tamanho dessa dor. Sei o que me custa parar o dia de hoje e escrever aqui. Um dia em que sinto uma solidão inesgotável me trincando os ossos; sinto o caco de vidro em que me tornei. Translúcido, cortante. Autocortante, diria. Um coração atrofiado por tanta negligência.
Novamente, boto agulha na linha e começo a me costurar os rasgos. Preciso ter paciência de me aceitar. Aceitar em mim tudo o que é roto e maltrapilho.
Lembro-me de uma passagem bíblica.
Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai. Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo;
porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; adoeci, e me visitastes; estava na prisão, e fostes me ver.
Então os justos lhe perguntarão: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? Ou com sede, e te demos de beber? Quando te vimos forasteiro, e te acolhemos? Ou nu, e te vestimos? Quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos te visitar?
E responder-lhes-á o Rei: Em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um desses meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o fizestes.
(Mateus, 25:34-40).
Sinto que é hore acolher o faminto, o sedento, o forasteiro, o nu, o doente e o prisioneiro que me habitam. Devo acolher o "pequenino" que sou eu. Devo acolher que há em mim de mais rasteiro. E ter tanto cuidado e compaixão por mim, quanto procuro ter por tudo o que está fora de mim.
Afinal, se abandonei a cadeira de protagonista de minha vida, a responsabilidade é única e exclusivamente minha. E nem sei o tamanho da dor de se dizer isso.
Salaam
Layla