sábado, agosto 29, 2009

Helwa yaa baladi

Há dias em que o tempo se fecha e tudo é fatigante, quando trabalhei demais, estudei demais e pensei demais. Há dias em que me sinto um farrapo humano e tenho pensamentos sabotadores que me atingem, dizendo que não sou especial, e nunca serei. Há dias em que me lembro de feridas, desapontamentos, palavras amargas, dores lancinantes, perdas, quedas. Nesses dias, não raro, subitamente, tocam cinco, seis notas de um violino denso e misterioso, aquela atmosfera que só os músicos árabes sabem reproduzir. Uma velha canção árabe enche de cores a sala, e enche de cores os olhos, e faz meu coração crescer, crescer, e quase sair de mim.
Nesses dias, Deus se veste de música, e vem me falar ao ouvido. Da forma como fala sempre, mas que tanta dificuldade eu tenho em compreender.
Quando escuto uma antiga voz cantando em árabe, eu me esqueço de tudo, me lembro apenas de quem sou realmente. Não importa em que lugar esteja, eu me lembro que minha terra é onde meu coração repousa.
Dentro do meu peito cabe uma Palestina inteira, uma Bagdá inteira, toda uma Beirute. Cabe um Vale do Bekar, o coração do Líbano. Cabe uma Capadócia, terra de otomanos, com seu chão de lua.
É muito, muito bom mesmo saber quem eu sou, e sentir felicidade por sê-lo...
Salaam
Layla
(Imagem: minha querida Camila me fotografou, em 2003).

sexta-feira, agosto 21, 2009

Bilhetes, livros e quindins

Há um certo tempo, ando numa fase de recolhimento que algumas pessoas não compreendem. Na verdade, sempre fui uma pessoa introvertida e, por isso mesmo, já fui considerada, em muitas situações, antipática ou antissocial. Normalmente, não gosto de grandes festas, não gosto de boates, não gosto de música alta e não gosto de passar muito tempo longe de minha casa. Isso pode parecer uma imensa chatice, mas muitas pessoas são assim e creio que devam ser respeitadas em suas idiossincrasias. Quando visito as pessoas que gosto, o faço com o coração muito aberto e a distância não arrefece para mim, em um milímetro, o afeto que sinto pelos que me são caros. Isso não significa que eu seja uma ilha, mas que eu seja dada a manifestações de afeto diferentes daquelas que o mundo hoje nos exige, diferentes de uma sociabilidade forçada, convencionada, que obriga que gostemos todos das mesmas coisas, que pensemos todos da mesma forma.
Há um tempo atrás, recebi um e-mail de minha querida Turmalina (http://cartadetarot.blogspot.com/), com um lindo texto da Martha Medeiros. Essas palavras foram escritas com uma incontível sensibilidade, e me tocaram deveras. Transcrevo-as como um presente para aqueles que costumam passar por aqui... Aliás, por eu nunca tê-los visto ou apertado suas mãos, isto não significa que não sejam, para mim, pessoas importantes.
Estava lendo o novo livro do Paulo Hecker Filho, Fidelidades, onde numa de suas prosas poéticas ele conta que, antigamente, deixava bilhetes, livros e quindins na portaria do prédio de Mário Quintana: "Para estar ao lado sem pesar com a presença".
Há outras histórias e poemas interessantes no livro, mas me detive nessa frase porque não pesar aos outros com nossa presença é um raro estalo de sensibilidade. Para a maioria das pessoas, isso que chamo de um raro estalo de sensibildade tem outro nome: frescura.
Afinal, todo mundo gosta de carinho, todo mundo quer ser visitado, ninguém pesa com sua presença num mundo já tão individualista e solitário. Ah, pesa. Até mesmo uma relação íntima exige certos cuidados. Eu bato na porta antes de entrar no quarto das minhas filhas e na de meu próprio quarto, se sei que está ocupado. Eu pergunto para minha mãe se ela está livre antes de prosseguir com uma conversa por telefone.
Eu não faço visitas inesperadas a ninguém, a não ser em caso de urgência, mas até minhas urgências tive a sorte de que fossem delicadas. Pessoas não ficam sentadas em seus sofás aguardando a chegada do Messias, que dirá a do vizinho. Pessoas estão jantando. Pessoas estão preocupadas. Pessoas estão com o seu blusão preferido, aquele meio sujo e rasgado, que elas só usam quando ninguém está vendo. Pessoas estão chorando. Pessoas estão assistindo a seu programa de tevê favorito. Pessoas estão se amando. Avise que está a caminho. Frescura, jura? Então tá, frescura, que seja.
Adoro e-mails justamente porque são sempre bem-vindos, e posso retribui-los, sabendo que nada interromperei do lado de lá. Sem falar que encurtam o caminho para a intimidade. Dizemos pelo computador coisas que, face a face, seriam mais trabalhosas. Por não ser ao vivo, perde o caráter afetivo? Nem se discute que o encontro é sagrado. Mas é possível estar ao lado de quem a gente gosta por outros meios. Quando leio um livro indicado por uma amiga, fico mais próxima dela.
Quando mando flores, vou junto com o cartão. Já visitei um pequeno lugarejo só para sentir o impacto que uma pessoa querida havia sentido, anos antes. Também é estar junto. Sendo assim, bilhetes, e-mails, livros e quindins na portaria não é distância: é só um outro tipo de abraço.
Martha Medeiros
Salaam
Layla


sábado, agosto 01, 2009

Pequeno momento de exorcismo íntimo

Gabriel García Márquez - para mim, o maior escritor do mundo - descreve, em "Cem anos de solidão", o melhor e mais incrível livro que já li em vida, uma passagem muitíssimo interessante. Úrsula Iguarán, esposa do indescritível personagem José Arcadio Buendía, era atormentada constantemente pelo fantasma de Prudencio Aguilar:
Numa noite em que não conseguia dormir, Úrsula saiu para beber água no quintal e viu Prudencio Aguilar junto à tina. Estava lívido, com uma expressão muito triste, tentando tapar com uma atadura de esparto o buraco da garganta. Não lhe produziu medo, mas pena. Voltou ao quarto para contar ao esposo o que tinha visto, mas ele não ligou. "Os mortos não saem", disse. "O que acontece é que não aguentamos com o peso da consciência". Duas noites depois, Úrsula tornou a ver Prudencio Aguilar no banheiro, lavando com a atadura de esparto o sangue coagulado do pescoço. Outra noite, viu-o passeando na chuva. José Arcadio Buendía, irritado com as alucinações da mulher, foi para o quintal armado com a lança. Ali estava o morto com sua expressão triste.
- Vá pro caralho! - gritou-lhe José Arcadio Buendía. Cada vez que voltar, eu o mato de novo.
A leitura do método de exorcismo de José Arcadio Buendía me parece deveras atraente. Há muito que tenho sentido a necessidade de me livrar de fantasmas inoportunos que, muitas vezes, não estão, de fato, mortos. Estes dias, me deparei com pessoas fantasmagóricas, cuja presença em minha vida só contribuiu para que desacreditassem em mim, para que me subestimassem e para que negassem a validade de minhas inteções... A todos vocês, fantasmas queridos, que tanto me atormetaram e que tantas dores de estômago me causaram, meu humilde, singelo, e profundamente sentido desabafo:
Vão pro caralho.
Salaam
Layla
(O trecho em itálico é uma citação literal de Gabriel García Márquez, em Cem Anos de Solidão. Tradução de Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Editora o Globo / São Paulo: Editora Folha de São Paulo, 2003).