terça-feira, março 06, 2012

Sobre a triste constatação de que é possível dominar o cunho vernáculo de um vocábulo e desconhecer, pela vida inteira, o coração dos homens e das coisas.

Dize-me então, minha mãe, tu que conheceste tudo: onde vive aquele Éden chamado os dias felizes, que me prometeram desde cedo? Minha mãe, tu que tudo solucionavas, minhas minúsculas e atômicas dores, onde estás agora neste lixo, neste quarto escuro?

A cada vez que abro a blusa defronte ao espelho há seios e pus.

E livros, infindáveis Álvaros de Campos, Bernardos Soares, todos jorrando pelas estantes, todos enfiando as mãos no que há de pior em mim e expondo como as chagas mais dolorosas, e justamente as mais recônditas, as que eu escondo, as que eu cubro com gaze, mertiolate, duas camadas de tecido, um sutiã fosco, fecho com mil botões e então já posso partir, minha mãe, e ir trabalhar. Comodamente tomarei um café sem açúcar e com canela, cuspirei verdades, convencerei a quem quiser ser convencido de minhas vãs convicções e voltarei para casa certa de que estou dando conta da existência.

Mas há a noite e a madrugada, e dessas não consigo fugir. Esgueiro-me como um rato, mas a lua me encurrala e ilumina com sua obscuridade níger tudo o que, em mim, sangra.

À noite, é dor, minha mãe. Quem é que se ocupa dessas feridas, quando eu fecho meus livros? E tudo aquilo que você disse que haveria, ó mãe que conheces tudo? Culpo-me por ter desenhado um futuro quimérico. Hoje, entre o ideal e o real, um precipício.

Culpo-me por acreditar em palavras boas, em promessas sorridentes, na sedutora obra poética do diabo. Culpo-me por ser ingênua por trás desse verbo apurado, que consegue empregar o cunho vernáculo de um vocábulo, mas desconhece o coração dos homens e das coisas. Culpo-me por desejar, por ver este oco, este vazio indigesto entre minhas costelas e por cogitar preenchê-lo com o vazio de outro corpo. Mas minha avidez é muda e amordaçada. De minha avidez, cuido eu. Ninguém tem nada com isso, não foi assim que me ensinaram?

Culpo-me, mãe, por esperar as flores que você disse que viriam. Por esperar os braços.

É tão sorrateira, e tão humana, e tão minha esta culpa.

Ascendência de Eva, de serpente.

Agora irás parir entre dores.

No ladrilho mais frio.

Na mais absoluta solidão.

(Obrigada, Manuel Bandeira, por emprestar-me palavras para este título e para essas coisas que, sozinha, não sei dar nome).