Sobre a triste constatação de que é possível dominar o cunho vernáculo de um vocábulo e desconhecer, pela vida inteira, o coração dos homens e das coisas.
A cada vez que abro a blusa defronte ao espelho há seios e pus.
E livros, infindáveis Álvaros de Campos, Bernardos Soares, todos jorrando pelas estantes, todos enfiando as mãos no que há de pior em mim e expondo como as chagas mais dolorosas, e justamente as mais recônditas, as que eu escondo, as que eu cubro com gaze, mertiolate, duas camadas de tecido, um sutiã fosco, fecho com mil botões e então já posso partir, minha mãe, e ir trabalhar. Comodamente tomarei um café sem açúcar e com canela, cuspirei verdades, convencerei a quem quiser ser convencido de minhas vãs convicções e voltarei para casa certa de que estou dando conta da existência.
Mas há a noite e a madrugada, e dessas não consigo fugir. Esgueiro-me como um rato, mas a lua me encurrala e ilumina com sua obscuridade níger tudo o que, em mim, sangra.
À noite, é dor, minha mãe. Quem é que se ocupa dessas feridas, quando eu fecho meus livros? E tudo aquilo que você disse que haveria, ó mãe que conheces tudo? Culpo-me por ter desenhado um futuro quimérico. Hoje, entre o ideal e o real, um precipício.
Culpo-me por acreditar em palavras boas, em promessas sorridentes, na sedutora obra poética do diabo. Culpo-me por ser ingênua por trás desse verbo apurado, que consegue empregar o cunho vernáculo de um vocábulo, mas desconhece o coração dos homens e das coisas. Culpo-me por desejar, por ver este oco, este vazio indigesto entre minhas costelas e por cogitar preenchê-lo com o vazio de outro corpo. Mas minha avidez é muda e amordaçada. De minha avidez, cuido eu. Ninguém tem nada com isso, não foi assim que me ensinaram?
Culpo-me, mãe, por esperar as flores que você disse que viriam. Por esperar os braços.
É tão sorrateira, e tão humana, e tão minha esta culpa.
Ascendência de Eva, de serpente.
Agora irás parir entre dores.
No ladrilho mais frio.
Na mais absoluta solidão.
(Obrigada, Manuel Bandeira, por emprestar-me palavras para este título e para essas coisas que, sozinha, não sei dar nome).
2 Pitacos:
Lindo, toca lá no mais fundo do coração.
Terrivelmente belo! Dolorosamente sublime!
Um Estudante de Humanidades
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