Dos caldeirões
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
(“Casamento”, Adélia Prado. In: “Poesia Reunida”, Ed. Siciliano - São Paulo, 1991, pág. 252.)
Hoje quem escreve é a mulher cansada de Freud. Cansada da psicanálise e da busca de consolo em teorias lógicas e racionais. Cansei-me de achar que o pensar me livraria de toda a angústia de meus sentimentos. Cansei de acreditar que uma boa bagagem intelectual me seria remédio para as chagas sentimentais do desassossego e da urgência. Cansei de tudo. Quero hoje, apenas, ajudar a limpar os peixes.
Quero hoje preparar o jantar com ervas que me inundem a casa e o coração de aromas, que façam se desenrolar no ar o cheiro da casa espanhola dos avós. Quero poder pensar que, assim como minha bisavó, e minha avó, e minha mãe, estou aqui a cozinhar e a frutificar o mundo com a comida saída de minhas mãos, com as palavras saídas da sabedoria que não colhi em livros, com os filhos paridos por meus quadris largos de mulher moura. Quero hoje curar a dor de barriga dos filhos com chá de ervas colhidas no quintal. Quero passar o dia à beira do fogão como essas mulheres antigas que me deram genes e corpo, que me deram olhos grandes e cabelos negros: cozinhando com os olhos pintados, com as unhas pintadas, como se dissessem: olhe que sou mulher de caldeirões, e sou tão bela. Olhe que ser mulher de caldeirões é parte de minha beleza.
Outro dia me disse: “adoro quando você cozinha para mim”. Acho que é assim que mais gosto de viver. Ouvindo a vida estalar pelos ares, e vendo o afeto rodopiar junto com a fumaça que sai das panelas.
Salaam
Layla
11 Pitacos:
Mais uma vez, palavras maravilhosas. Parabéns, querida!
Sabe, felicidade nunca rimou tanto com simplicidade. Um beijo.
Uma rápida pesquisa sobre a Loba como animal de poder me trouxe aqui; e aqui compartilho com você a extraordinária re-significação da Loba ligada à libido, quando agora ela assume as dimensões da mulher-animal que procura transcender as dimensões do ser e do self, sem perder a mágica e o mito de animal evoluído.
Sou mais uma mulher que usa o arquétipo da Loba para contar suas histórias, e devo confessar-lhe que no início não foi fácil lidar com um blog que, à primeira vista, tinha "quase" tudo para ser um local de encontros libidinosos.
Mas o tempo, os propósitos e o que se falou e fala ali foi aos poucos remodelando conceitos e criando pontes. Hoje os Uivoooos conduzem à Loba; e ela é alguém que aprecia a Lua, as estrelas, e seu Uivoooooo é somado aos tantos outros que tentam contar histórias.
Obrigada pelos momentos que passei aqui.
BeijUivooooooooooosssssss da ,Loba
Oi querida
Mesmo tendo um horário flexível, liberdade para gastar o dinheiro do meu trabalho do modo como queira e sendo feliz por trabalhar, tem dias em que queria ficar somente ao lado do caldeirão!
Eu não me importo de limpar o peixe e de colher as ervas no quintal...adoro fazer o pão e recriar o alimento!É uma pena que não consiga abraçar o mundo todo...eu tento...
Por enquanto vou deixando o caldeirão para alguns finais de semana!!!
Beijos preciosos
Layla, você diz que é uma mulher comum, e há tempos penso em lhe dizer que discordo. Uma mulher capaz de tão profundos sentimentos, de tão belas expressões em palavras e poesia, de tão pungente melancolia, guarda em si algo de especial, precioso como uma jóia translúcida.
E eu nunca lhe agradeci por compartilhar tanta alma e tanta beleza comigo.
Obrigado, de coração.
Olá!
Gostei muito do seu blog, muito interessante mesmo.
Estou esperando uma visitinha oam eu blog!!
Tchau
Nem sempre a genialidade de Freud nos preenche... mas viver, isso sim, nos preenche e nos transborda!
Namastê!
bjs
PS: adorei seu blog
Layla, passo aqui de vez em quando para "bisbilhotar". Adoro tua profundidade, embora às vezes a tristeza seja quase palável. Se serve de consolo, todos estamos em busca de algo que nos preencha. Amor, satisfação profissional, reconhecimento da família, admiração. Não devemos nunca deixar de buscar. E de sonhar. Que Deus esteja contigo. Abs, Andrea
Hoje eu apenas oro pra que meus quadris largos sejam capazes de parir, como minha avó, minha bisavó...
Saudades
Mirka
Oi Layla, estava no google procurando algo sobre Clarissa Pinkola Estés e encontrei este raro prazer de leitura - seu blog.
Obrigada por este presente.
bjs, Gisele
Primeira vez que venho ler o seu blog....adorei...parece que virei mais vezes porque definitivamente valeu a pena.
Toda a sorte e todas as palavras para escrever.
Abracos.
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