sábado, junho 02, 2007

Do momento de despertar


Em minha vida, há uma série de momentos que, se fosse escrever uma autobiografia, eu agruparia num capítulo referente à escolha de meus caminhos na Psicologia: “Por que me tornei junguiana”, rs. O próprio Jung não desejava que ninguém se dissesse “junguiano”, mas serei obrigada a fazê-lo por razões estritamente sentimentais – e meu amor pela obra desse velho simpático é imenso.

Hoje tenho um grande relatório para iniciar, mas tenho vontade de protelá-lo por um momento, apenas para vir até aqui contar uma história. Não sei porquê, deu-me na idéia de dividi-la com os outros. É uma de minhas primeiras histórias de amor: o amor pelos livros – sobretudo, o livro que narrava a fábula da Bela Adormecida.

Com três anos e meio de idade, fui alfabetizada por meu avô, numa mistura de espanhol com português. Quando eu tinha por volta de sete anos, já sentia muito gosto pela leitura. Na escola, queria devorar com os olhos quaisquer letras que pudesse, passava tantas horas quanto me fosse possível a escrever. Uma prima querida, que na época era sócia do Círculo do Livro, a cada mês me dava um livro de presente. Aquele era o melhor momento de minha vida. Os primeiros presentes foram três livros lindos, grandes, de capa dura, com publicações da Disney: Os 101 Dálmatas, Bambi e A Bela Adormecida. Por este último, meu amor era especial. Algumas vezes, eu dormia abraçada a estes três livros, como a vigilante atenta de um tesouro precioso.

Quanto eu estava para completar sete anos, nasceu minha irmã. No afã de suprir as necessidades da pequena, todos – eu disse TODOS – os meus brinquedos foram dados a ela. Como era ainda muito miúda e não sabia brincar, ela destruiu, sistematicamente, tudo o que eu havia juntado a vida inteira: as bonecas, as panelinhas, os jogos. As bonecas, me lembro, acabaram destroçadas, rabiscadas com caneta, tinham arrancados seus cabelos. Uma cena desoladora para quem tanto cuidava de suas coisas. Entretanto, uma coisa eu preservava: os livros. Aqueles, ninguém me tomaria. Eu os defenderia como pudesse. Obviamente, por serem guardados com tanto afeto, eram o que mais despertava a curiosidade da menor, que os pedia aos meus pais insistentemente.

Foi assim que, um dia, ao chegar da escola, indo ao encontro de meu tesouro o encontrei em pedaços. Cuidadosamente colado por minha mãe, é verdade. Ela passou fita adesiva no livro inteiro, como se aquilo fosse evitar meu choro desesperado ao ver partidas as figuras que eu havia aprendido a amar. Alguém entregara à minha irmã meus livros. Alguém entregara a uma criança de dois anos de idade os meus sonhos, meu porta-jóias de palavras perfeitas, meu depositário de devaneios solitários em meu mundo de criança só. Eis o primeiro luto de minha vida: o primeiro tesouro perdido.

Cresci. Em momentos cruciais de minha vida, infância afora, adolescência afora e mesmo adulta, eu costumava, em crises emocionais, sonhar com a imagem dos livros despedaçados. E era uma imagem muito forte e peculiar. Eu jamais esqueci o vestido da princesa que dormia, o rosto do príncipe, da bruxa – que era belíssima – e das três fadinhas. Jamais esqueci. E nunca os vi novamente.

Dezoito anos depois do ocorrido, quando eu estava no segundo ano da faculdade de Psicologia, tive uma disciplina que foi meu primeiro contato acadêmico com a obra de Jung. Meu professor, na época – hoje, meu terapeuta – um dia nos propôs fazermos, em sala, análise de contos de fada. Para ilustrar, ele trouxe uma fita de vídeo muito antiga. Assim que iniciou-se o desenho, algo se moveu dentro de mim.

Dezoito anos depois, eu estava ali, diante dos mesmos desenhos outrora rasgados, tornados em pedaços. As figuras, idênticas, tão antigas quanto meus livros, ressuscitavam diante dos meus olhos – mais vivas ainda que antes: antes só eram livros, estáticas, petrificadas. Agora eu as via se mexendo, dinâmicas, sorridentes, a contarem a história não só para os olhos, mas também para os ouvidos. A Bela Adormecida tinha voz, e cantava, e o príncipe falava, e a coruja falava, e eu via as fadas que imaginei voando, voarem de fato. Aquilo foi demais para meus olhos – meus grandes olhos ocres, transformados, naquele momento, em olhos de criança: os olhos da criança que via ressuscitar seu tesouro, um tesouro em movimento, um tesouro que dançava.

Não pude suportar esta cena. Comecei a chorar muito e saí da sala. Em prantos, entendi o que acontecia. Era uma grande vivência simbólica. Não era o peso de um filme infantil em si, mas o que ele representava para minhas retinas, pois ele as atravessava e imprimia-se direto em minha alma. Aquilo era uma mensagem do self – só agora eu compreendia como, de fato, ele fala conosco – que dizia: o tesouro nunca foi partido. O tesouro é teu. Dezoito anos depois, e pela vida toda, a Bela Adormecida é tua, ela nunca se partiu.

Chorei, chorei e chorei para lavar o peso de todos esses anos. Era a vida me dizendo: o que em ti é bom jamais será partido, esfacelado. Era como se eu me descobrisse inteira, como se eu existisse para além daqueles livros, como se eu fosse de todos os livros que ainda havia por ler. Era como se eu pudesse olhar para os olhos da menina diante do livro rasgado e lhe dissesse: agora podemos ser gente grande. Agora podemos acordar também.

Talvez esse seja o motivo pelo qual tenho grande paixão por contar histórias para crianças. Acho que vejo nos olhos delas os meus olhos de menina refletidos.

Salaam
Layla

Imagens:
Bela Adormecida: http://www.disney-vacation-time.com/img/sleeping-beauty/sleeping-beauty-3.jpg
Aurora capesina: http://scoop.diamondgalleries.com/scoop_article.asp?ai=10169&si=123

11 Pitacos:

Anonymous Anônimo falou...

Sem palavras. Um texto capaz de fazer brotar lágrimas.
Esse blog é minha inspiração!

Beijos,
Max

6/03/2007 02:46:00 AM  
Anonymous Anônimo falou...

Texto lindo, emocionante!
Adorei seu blog.
Sou psicóloga, e acho Jung muito intressante embora prefira a Psicanálise.
Beijinhosss.

6/03/2007 03:27:00 PM  
Anonymous Anônimo falou...

Meu blog não apareceu no comentário.

6/03/2007 03:28:00 PM  
Blogger Beth Kasper falou...

Meus pitaco vai dividido em partes:

Primeiro:
Obrigada pela visita ao meu blog

Segundo:
Constatações - temos em comum a formação em História e admiração por Jung. Cheguei a ele intuitivamente por causa de meus sonhos malucos.
Surreais, diria... Tenho comigo o livro O Homem e seus Símbolos e é só o que tenho dele. Pretendo ler tb. o Memórias, sonhos e reflexões.
Um beijo pra você e espero conversar contigo mais vezes.

6/03/2007 06:50:00 PM  
Anonymous Anônimo falou...

Parabéns!!
A emoção está alta!!
Ainda existem mtas mentes brilhantes no mundo!!
Mto bom seu blog!!
Se der p passar no meu, agradeço!
www.ambiviodasilusoes.weblogger.com.br

6/03/2007 07:49:00 PM  
Blogger Carlota e a Turmalina falou...

Oi lindinha

Eu fiquei aqui pensando e tentei buscar no baú das minhas lembranças mais alguma estória infantil....mas na verdade a minha favorita, a primeira, é tb A Bela Adormecida.Depois me lembrei de um livro da Mary Poppins e outro de Alice.Minhas personagens favoritas sempre viveram uma realidade diferente. Que Branca de Neve, que nada...
Beijos

6/03/2007 10:18:00 PM  
Anonymous Anônimo falou...

Querida Layla,

Obrigada pelas emoções que suas palavras fizeram brotar em mim!
Você como estudante de psicologia já deve saber que a infância é a fase em que se constroe a nossa identidade. Muitas crianças não são respeitadas devidamente, e talvez por isto exista um número tão assustador de adultos com problemas psicológicos.
***
(...)"o que em ti é bom jamais será partido, esfacelado."
Mesmo que as circunstâncias insistam em retirar as nossas preciosidades, o amor que há em nós nunca partirá! Quem sabe ele seja a nossa única companhia.

Uma ótima semana, e continue a nos presentear com as suas belíssimas palavras!

Beijos,
Eleonora.

6/05/2007 04:47:00 PM  
Anonymous Anônimo falou...

Meu conto de fadas favorito é a Bela Adormecida... Nunca pensei no por que. Talvez a profecia autocumpridora, feita na infância e que a adormece no futuro, tenha relação com minha vida. A profecia da morte anunciada... Será que já acordei? Bem, melhor eu ir para a análise.
Jung?? Esse surgiu com uma colega de turma, bem mais velha, que o conhecia de longa data. Foi num trabalho em grupo, com essa colega, sobre adolescência, numa aula de Psicologia da Personalidade com foco freudiano dada por uma professora lacaniana que meu lado (com o perdão de Jung) junguiano brotou. Não consegui escrever sobre teorias, não consegui fazer isso! Surgiu em mim algo como uma rebeldia adolescente que não me permitiu trilhar o caminho esperado naquele momento, então, eu escrevi e li um poema falando de adolescência para a turma, isso ao som do cd do filme "Em algum lugar do passado". Essa contramão me rendeu, daquela professora lacaniana, o apelido de Borboleta e ela, com todo merecimento, passou a ser chamada, por mim, de Mestra. Fui buscar Jung fora da faculdade, a qual era totalmente voltada a Freud com boas doses de Lacan, outra contramão na minha vida. Sempre na contramão... mas, o engraçado, é que nunca me acharam rebelde em lugar algum! Mas acho que sou sim, ontem estava conversando com uma amiga e ela contava sobre uma entrevista da Rita Lee, em que lhe perguntaram como uma “rebelde” como ela mantém um casamento de tantos anos, ela disse que era por rebeldia!!! Afinal, hoje os casamentos não duram nada e isso era coerente com a personalidade rebelde dela. Meu casamento durou um ano! Não era o que eu queria, nem é o que quero, sou uma rebelde! Acho que é por isso que me identifico com a Bela Adormecida... ela é uma rebelde sem se dar conta, como eu. Ela vai atrás da sala trancada, sem saber que não podia... Ela paga o preço de um tempo inerte. Eu as vezes fico sem saber o que está acontecendo, como se estivesse em um casulo (talvez por isso o apelido de Borboleta...). De repente, algo (um beijo, talvez) me faz ganhar asas.
Layla, Layla... aqui estou eu, fazendo autoanálise no seu blog... Acho vou levar esse texto para minha maravilhosa analista junguiana na sexta-feira e talvez montar uma cena na caixa de areia com a Bela Adormecida e várias borboletas....
Beijos,

Mone

6/13/2007 09:38:00 AM  
Blogger Brisa falou...

Olá querida!
Tua história reforçou em mim que o bem e o belo existem...
Obrigada por revelá-los para nós!
Beijos e brisas!

6/13/2007 10:11:00 AM  
Blogger Big Daddy Big Head falou...

Quantos comentários lindos!!!

E por falar em despertar tô na maior preguiça!

Beijos Tya Layla do Candelabro na Cabeça do seu Sobrynho Augustinho...com Ì poís, Augustynho com Y é meio gay!

6/14/2007 10:40:00 PM  
Blogger Carlota e a Turmalina falou...

Salve Freud, Jung e os sonhos que nunca tenho....acho que descobri o motivo da admiração pela bela que tanto dorme...é que eu nunca durmo muito, desde pequena. Defeito de fabricação, minha querida!!!
Nem príncipe encantado me faz aterrar a noite toda...
Beijos iluminados

6/22/2007 10:08:00 PM  

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