quarta-feira, julho 19, 2006

Frutos e Flores

Meu amado me diz
que sou como maçã
cortada ao meio.
As sementes eu tenho
é bem verdade.
E a simetria das curvas.
Tive um certo rubor
na pele lisa
que não sei
se ainda tenho.
Mas se em abril floresce
a macieira
eu maçã feita
e pra lá de madura
ainda me desdobro
em brancas flores
cada vez que sua faca
me traspassa.


(Marina Colasanti - Extraído do livro "Rota de Colisão", Editora Rocco, 1993).

Hoje foge-me o verbo: estou lacônica como os espartanos. Mas devo dizer que é assombrosa a identificação que este poema me causa. Eu, com minhas curvas e minhas sementes.

Sempre fui mulher com vontade de parir. De parir gentes, e parir amores.

E parir palavras.

Salaam
Layla

sexta-feira, julho 14, 2006

Dos diálogos com a velha estação

Quando me sentava, antigamente, diante da velha estação de trem, olhava o vazio e, tentando me acostumar à solidão, recitava intimamente os versos de Pessoa: "para ser grande, sê inteiro". Sempre lutei para ser inteira, mulher com duas pernas, caminhante incansável - às vezes, dobravam-me os joelhos, mas reaprendia a levantar.

"Inteireza". Sempre. Apesar dos buracos, apesar de tudo aquilo que me falta.

Hoje, na velha estação, vejo corujas e estrelas. Elas se lembram da última vez que lá estive, e dizem: "sejam bem-vindos, é boa vossa visita...".

Várias coisas permanecem intocadas na estação. Outras mudaram.

Mudaram meus olhos.

Salaam
Layla

quinta-feira, julho 06, 2006

Da desimportância - ou: Sobre não fazer diferença às demais pessoas do mundo

O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma!

Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?

O meu amor não tem
importância nenhuma.

(Cecília Meireles, “Inscrição na Areia”)


É muita ousadia minha achar que um dia sairei deste limbo. Achar que um dia encontrarei um coração despedaçado como o meu, pronto para ser costurado pelas minhas mãos.

Linha e agulha em mãos, e eu sou boa costureira. Ofereço meus préstimos de artesã, um afago à madrugada, sonhos esfacelados como num quebra-cabeça em que se perderam peças. Poesias mal escritas por minhas mãos analfabetas e de má caligrafia, meia garrafa de vinho, aberta; música francesa que dá um tom dolorosamente elegante ao meus rosto de linhas tristes. “Tens belas feições, minha cara”, disse-me um amigo que tentava ser gentil. “Amiúde, são tristes”, completou, com aquele ar de quem nada podia fazer.

Não seria melhor me resignar, de vez? Comodamente, sentar-me diante da refeição noturna, com um semblante apático e insosso, degustá-la em solidão e, em seguida, ver os e-mails de ninguém, e pegar no sono para que, no dia seguinte, tudo se repita? Não seria melhor acomodar-me nisso, sem almejar nada mais especial, visto que a vida parece andar dizendo: “Não és especial! Não és especial!”...

O fato é que me coloco, uma noite mais, à janela, ouvindo as mesmas músicas, pensando as mesmas coisas, e sentindo a reincidente e esfacelante sensação de desimportância. Parece que me reduzi à poeira de mim mesma. Parece que, nestes momentos, a força que trago nos olhos só existe sob a forma de vestígio. Tiro minha máscara de mulher espartana, entra em cena a boneca de trapos, vítima de seu incurável pessimismo.

Mais uma noite em que não consigo pesar o que vale, e o que não vale a pena.
Mais uma noite em que, como Cecília, eu sou gota de mercúrio, dividida, desmanchada pelo chão.

Salaam
Layla