Sobre o Inefável; sobre a Dança

Há tempos eu não falava aqui sobre dança do ventre. Falar sobre dança me é estranho. É como se o exercício da metalinguagem fosse desnecessário: como hei de falar daquilo que sou? Se pudesse explicar em palavras o que sinto, não dançaria, ouvi certa vez. Agora estamos aqui, eu e as palavras, e a necessidade de traduzir o intraduzível: o que é, para mim, esta coisa de dançar.
Dança do ventre, para mim, sempre foi sinônimo de “celebração”: celebrar a alegria e a intensidade da vida, a felicidade de ser mulher e sentir-se bem como tal. É um contato com nossas origens mais longínquas e ancestrais, que nos traz um nítido bem-estar. Um contato com o núcleo primevo e instintivo que temos dentro de nós, com nossa “mulher selvagem”, como sabiamente apontou Clarrisa Pinkola Estés.
O ato de dançar não é só bonito, é lúdico e terapêutico. Coloca-nos em contato com nossos abismos, com o que há de mais belo e de mais assustador em nossas profundezas. É, portanto, exercício de auto-conhecimento: descobrindo-se, a mulher se aceita e se valoriza, tornando-se, desta forma, mais forte e mais segura.
O que é esta felicidade que me acomete enquanto danço? – pensei um dia. Ainda busco respostas, mas é inútil: é impossível responder racionalmente a esta questão. Creio que seja a felicidade de “ser mulher”. Termo batido, já banalizado pela obviedade dos discursos modernos, mas não consigo recorrer a outro que expresse esta idéia melhor. Ser mulher é uma experiência indescritível, e é dançando que a vivencio de forma plena. O que há nesta dança que tem este estranho poder? Ainda não sei. Mas é algo capaz de conectar a dona de casa do século XXI com a camponesa da antigüidade egípcia, com a sacerdotisa que dançava para Ísis ou Bastet. É um fio que une todas nós, deslocadas no tempo e no espaço: a professora de História de hoje, com a grega que colhia trigo, com a babilônica que dava à luz, com a fenícia que fazia potes de barro. A dança celebra a maternidade, a fecundidade, e isto implica dizer que ela se relaciona à todas as mulheres que já existiram. Haverá, portanto, melhor meio de congregação entre nós?
Congregar, alegrar, vivenciar, ensinar, aprender, existir. Este para mim é o sentido desta Arte. Acrescento também o verbo resistir, é claro. Verbo no qual, muitas vezes, tem se resumido a história de nossa existência – a existência de todas nós, mulheres – neste mundo que nos abriga. Nossa história tem sido a história da perseguição, da mutilação, do emudecimento, da obliteração, do esquecimento. Nossa história é a história da resistência: em meio ao sal desse mundo, amorfo, normopata e descomprometido com os valores femininos – a emoção, a intuição, o sentimento – continuamos brotando como flores, parindo nossos filhos, dando-lhes de comer, dando-lhes de viver. E dançando. Rejeitando o cinza, e semeando vida. A dança acompanha nossa história. Acompanha a cigana que ganha a vida rodopiando, acompanha a beduína que se prepara para trazer um novo filho ao mundo, acompanha a menina recém-menstruada na tribo. Acompanha, hoje, a mulher moderna que, para não se perder de si, busca nas ancestrais essa força.
É por isto que a dança é parte dessa resistência. Continuamos doendo, mas continuamos dançando. “Como insulto. Como resposta. Como centelha do viver”, como diria Clarice Lispector. Como um golpe de otimismo, avassalador como um sorriso inesperado, que nos faz fechar os olhos, felizes.
Salaam
Layla
Foto: "Zaar", Cia. Rhamza Alli de Danças Árabes, 2001. O Zaar é uma dança de transe levado à exaustão. Baseia-se em antigos rituais do sul do Egito, e consiste numa dança circular marcada por um ritmo forte, de duas notas, que pulsa como o coração. Tive a felicidade de dançá-lo: eu sou a do meio da foto.