sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Presença

Hoje, depois que desliguei o telefone, fui tomada pela estranha sensação de que você estava ao lado. Que mágica é essa que costura distâncias, atravessa quilômetros e faz um beijo seu tocar meu rosto? Eu quase vejo sua silhueta na casa escura, quando a lua vem tocar minha janela. Olho para ela como quem se dirige à testemunha do diálogo que mantemos a quilômetros, diariamente. Certamente, do lugar onde ela está, consegue ver nós dois ao mesmo tempo.

Hoje alguém me disse que a grande recompensa de tudo é acordar no domingo e ter alguém com quem compartilhar o café. E eu me lembrei dos inúmeros cafés que compartilhamos aos domingos, quando eu estava lá, ou quando você estava cá. Nos levantávamos tarde, e eu preparava um capuccino com muita canela, uns pães de queijo. Nunca a felicidade foi tão simples.
Tão simples que não há palavras para descrevê-la: floreia-se aqui e ali, e já não é felicidade. É que acho que a felicidade não gosta de firulas. Ela é tão direta, ela simplifica tudo. Não gosta de adjetivos difíceis, de vocabulário rebuscado. Felicidade é apenas o som de alguém batendo à porta. Um telefone tocando, madrugada adentro.

Felicidade é uma coisa que eu aprendi a tocar com as mãos quando você chegou. Quando você veio, assim que eu abri a porta, alguém me disse para tomar muito cuidado pois, dali em diante, iria chover felicidade, e com tanta força, ao ponto de derrubar todas as cercas, semear todos os campos, fecundar a terra árida. Quando vejo tuas mãos entrelaçadas às minhas, entendo o que é ter a felicidade na ponta dos dedos.

Salaam
Layla

Este girassol, coloco aqui, em homenagem à minha bisavó...

quarta-feira, fevereiro 04, 2009

Sobre a formatura da filha

Quando eu tinha cinco anos de idade freqüentei uma escolinha pela primeira vez. Chamava-se Cecília Meireles; não por acaso, acredito eu. O uniforme era azul marinho, uma cor que eu detestava imensamente, sobretudo porque a camisa era xadrez, e era obrigatório usar-se umas meias vermelhas. Eu me sentia uma ave estranha, uma ave de pés vermelhos, uma ave horrenda e desengonçada. Era assim que eu, de fato, me enxergava, do alto de minhas cinco primaveras. Meu cabelo, fraquinho, por motivos que ainda hoje desconheço, não crescia nem por um decreto, e eu ostentava uma aparência de menino. Nessa época, tenho uma lembrança viva: a separação da mãe, o abandono do colo pela sala de aula. Isto deve ter doído. Lembro-me exatamente de atravessar os portões da escola e subir a rampa chorando escondido, para que minha mãe, na calçada, a me ver entrar, não flagrasse minha compreensível fraqueza de criança.

Dois anos depois, passei a freqüentar a escola, propriamente dita. Também me lembro do primeiro dia de aula. Na verdade, lembro-me mais ainda dos momentos que o antecederam. Eu iria estudar à tarde e, pouco antes do horário de almoço, fui tomar um banho para me preparar para a estréia entre as crianças grandes. Lembro-me exatamente do banheiro, da cena que eu via na antiga casa, da angústia a me devorar o estômago, do medo do desconhecido, da professora concebida apenas em fantasias. Depois do banho, minha mãe me vestiu com uma camiseta amarelinha, de mangas longas, e me levou para a aula. O resto, não lembro mais.

Vinte e dois anos se passaram desde o primeiro dia de aula, e me vi naquele ginásio cheio, colando grau pela segunda vez na vida. Enquanto me lembrava dessas cenas distantes, ouvi meu nome ser chamado pelo reitor, numa mesa lá adiante, muito longe de mim, me convocando a comparecer à frente para buscar um diploma de honra ao mérito que eu havia ganhado como melhor aluna do meu curso. Nessa hora despertei de minha bolha particular, onde a pequena criança iniciava sua vida. Peguei o certificado e, de volta a meu lugar entre os formandos, procurei minha mãe na arquibancada, e percebi que chorava. Levantei-me da cadeira, aproveitando a balbúrdia causada pela miríade de estudantes presentes, estiquei com os braços aquele papel em mãos e gritei à minha mãe: “é para você”.

Isto não era nenhuma mentira. Obviamente, o meu diploma, conseguido com o suor de cinco penosos anos de uma faculdade integral, entremeados ainda com meu trabalho como bailarina, é algo por que lutei pensando em mim, e naquilo que eu poderia fazer aos outros como psicóloga. Mas aquela média de 9,468 durante a faculdade, aquilo não é meu, aquilo é de dona Terezinha, aquela pequena mulher na arquibancada, com seus louros cabelos e seus olhos claros como um favo de mel.

Dona Tê, como assim a conhecem, é a mulher mais forte que conheci em toda a vida. Lembro-me de raras ocasiões em que a vi chorar, e eram cenas tão escassas, que a cada vez me impressionavam muito, pois eu sabia que não tão cedo eu voltaria a ver aquela mulher demonstrar um milímetro de fraqueza. Eu já sou bem diferente. A cada desmantelo, a cada rasgo, sem nenhuma vergonha, aceitei o trabalho paciente da mãe-costureira, a me remendar por dentro. Não por poucas vezes, a vi gritar enérgica comigo: “você é uma mulher ou é o quê?”.

Se há algo de bom dentro de mim, muito desse algo foi construído pelas mãos pacientes de Dona Tê, a me ensinar a ser um ser humano. A mulher que nunca vi ruir, que nunca vi se desesperar. Muitas vezes, quando me via beirando o precipício, eu a escutava dizer: “não se preocupe, que vamos segurar as pontas”.

Certa vez, na primeira faculdade que cursei, História, fui agredida verbalmente, de forma grotesca, por um imbecil que comigo estudava, por tentar defender um gato que o infeliz visava maltratar. Voltei para casa muito abalada e, bem nesse dia, ligou-me a mãe-costureira para saber como eu estava. Contei o ocorrido quase chorando, e jamais me esqueço do que ela disse, do alto de sua força e de sua fleuma: “a minha dor... é não poder colocar você de novo dentro da minha barriga”.

Os anos se passaram, e lá estava Dona Tê, no ginásio, atrás de seus óculos de aro roxo. Ao lado dela, na arquibancada, minha irmã, meu melhor amigo, minha pequena família, formada por meu namorado e meu enteado, e meu professor de árabe, o sheikh que me recebeu em sua família como uma segunda filha, e a quem tenho como um presente precioso dado pela vida. Mais adiante, minha grande amiga e inspiração diária, com sua família sorridente, que se dirigiu àquele ginásio no único intuito de me ver formada.

Cheguei à pueril e óbvia conclusão de que eu não sou absolutamente nada sem essas pessoas.

Obrigada.

Salaam
Layla
Imagem: "Maternidade", Pablo Picasso.