quarta-feira, dezembro 03, 2008

Do coração e do ventre

Muitas vezes fico longos períodos sem escrever aqui, e depois apareço me justificando. Na verdade, nem sei porque faço isto, uma vez que não gosto de dar nem de pedir justificativas... O caso é que, desta vez, trago a público um dos motivos de minha ausência, sob a forma de convite.

A dança sempre ocupou um espaço primordial em minha vida. Em muitos tempos difíceis, ela me foi a grande terapeuta. Antes de eu aprender (ainda não aprendi direito...) a resolver as coisas em minha cabeça, aprendi a resolver no corpo. Aprendi a me aceitar, a achar bonito o meu imenso quadril de beduína parideira, a admirar o trabalho feito por minhas mãos. Nesses nove anos de dança, produzi cada roupa, cada adereço que utilizei, e todos com o exercício contínuo da paciência e da dedicação. Em épocas sombrias, os pontos dados nas roupas eram costuras em meus próprios rasgos, e assim eu aprendi a ser costureira e a ser mulher.

Hoje, num momento em que me sinto tão mais feliz, a dança continua me acompanhando. Este ano, produzi muitas coisas relacionadas a ela. Nosso espetáculo de fim de ano, Amar (“lua”, em árabe) é o resultado de um ano de trabalho intenso... Meus joelhos permanentemente roxos que o digam...

Sinto-me feliz, às vésperas da apresentação, por ter consciência de minha entrega. Por ter conhecimento de que não estarei, nesse domingo, sozinha em meu corpo: meus quadris, os dedico a milhares de anos de história e a memória de todas as mulheres eu carregarei comigo. Quando danço, sinto como se um fio tênue me unisse a elas. O meu personagem é a Lua Cheia: a maternidade realizada, a mãe que nutre e acolhe. Nos meus ramos de trigo depositei toda o sentido simbólico da minha doação. Eu, que não tenho filhos, aprendi a vivenciar a maternidade do meu jeito: a parir aqui, inúmeras palavras e, no palco, dar à luz música e movimento.

Orgulho-me de dizer que este espetáculo tem uma razão de ser, um significado. Em nossa companhia de dança, a técnica sempre foi muito importante, mas sozinha ela nada pode transmitir. Como em todos os nossos espetáculos anteriores, costumamos focalizar temas mitológicos, arquetípicos. Em Amar, as fases da lua são relacionadas ao feminino e ao ciclo da vida: a lua crescente é concebida como uma metáfora para a fertilidade potencial de cada mulher. A lua cheia representa a maternidade, a mãe nutridora e acolhedora, ao passo que a lua minguante é sua imagem complementar: o feminino que ceifa e destrói, guiado pelas emoções difíceis. A lua nova representa o renascimento e reinício do ciclo: o feminino se mantém, mantendo vivo o mundo, dando-lhe razão de ser, dando-lhe continuidade.

Isso sem contar as danças tribais, de inspiração norte-africana, árabe, hindu e cigana. São minhas preferidas. Quando tatuo meu rosto e vou dançar, entendo que isto seja uma pequena vitória contra todos os momentos em que me sabotei, em que agi contra mim mesma, em que cultivei sentimentos de desamor e de baixa auto-estima. Eu danço para reagir a tudo isso: como afronta, como resposta, como centelha de viver, como diria Clarice Lispector.

AMAR

Companhia Rhamza Alli de Danças Árabes

07 de dezembro
21 horas
Teatro Marista

Londrina, Paraná, Brasil


Salaam
Layla

(Imagem: Rhamza Alli fotografada por Milton Dória)