sábado, dezembro 02, 2006

A que gera

Pelos calçadões e vielas cheias de flores da Universidade Estadual de Londrina caminha, algumas vezes por semana, uma pessoa especialíssima. Uma pessoa às vezes pouco notada, mas à qual meus olhos jamais puderam ser indiferentes. Este post é dedicado àquela mulher de olhos brilhantes de céu e de otimismo.

Esta senhora a que me refiro é uma mulher em idade avançada, cujo nome eu nunca soube: chamam-na carinhosamente de “Vozinha”, apelido pelo qual ficou conhecida entre os alunos. Eu costumava encontrar Vozinha sempre diante da Central de Salas, onde ocorre a maioria das minhas aulas na faculdade. Lá estava ela com as cartelinhas de adesivos que vendia para arrecadar dinheiro para o próprio sustento. Que situação terrivelmente revoltante, pensava eu. Chegar àquela idade, onde merece-se descanso, e ser obrigada a perambular vendendo suas cartelinhas para poder sobreviver. O que me tocava era justamente isto: ela jamais esmolava, queria apenas vender as cartelas: “compre uma para me ajudar”, dizia. Só que havia algo em mim, lá no fundo, que ainda desconheço, que era terrivelmente tocado pelas palavras dessa mulher. Aquelas mãos enrugadas a me oferecer as cartelinhas com desenhinhos pueris. A pele marcada de sulcos como o chão árido e rachado, os olhos vivos como arco-íris. Esta era a impressão que eu tinha: seus olhos nunca ficaram velhos. Freqüentemente, eu comprava várias cartelas e saía a engolir grosso uma vontade terrível de chorar diante daquela cena. Sobretudo, diante daquela alegria que me desmontava: os olhos de ternura absurda, e a resposta sempre no mesmo tom: “obrigada, minha filha... já me ajudou bastante!”. Outro dia olhei para ela e disse: “não ajudei nada. É a senhora que me ajuda quando passa aqui”.

Ocorreu que, num dia qualquer, estava eu sentada numa mesa do lado de fora da cantina, à sombra. Ela veio oferecer seus adesivos como de costume; comprei só uma cartelinha porque estava sem dinheiro. Antes de ela ir embora, virei-me e perguntei: “Vozinha, espere um minuto... Eu vejo a senhora sempre, e nunca lhe perguntei o nome... Como a senhora se chama?”

“Ah, minha filha”, respondeu ela. “É um nome muito feio... Muito feio, minha filha!”. Como o Pequeno Príncipe, não consigo desistir diante de uma pergunta, e prossegui com minha investigação: “ah, Vozinha, conta pra mim. Não existe nome feio.” E ela: “bem... outro dia até encontrei uma moça com o mesmo nome que eu. Ela também tinha vergonha, mas também... É um nome feio minha filha. É Conceição o meu nome”.

Mais uma vez, uma ternura imensa me tocou, e não pude me furtar a sorrir para aquela mulher que não tinha ciência do peso do próprio nome... Talvez, em tantos anos de vida, nunca alguém lhe tivesse dito o que seu nome significa, o peso que contém, a força que carrega.

“Mas Vozinha. Conceição é um nome lindo. Significa conceber, gerar. Significa que a senhora é aquela que faz nascer. A senhora prepara o nascimento!”.

“Olha isso, minha filha...”, disse-me, surpresa. “Mas é mesmo? Olha isso... É nascimento? É verdade, eu não sabia disso!” – E partiu com suas cartelinhas, sorrindo, pelas vielas floridas de rosa e amarelo.

Posteriormente, procurei o nome no dicionário. Eis o que encontrei:

Conceição:
[Do lat. conceptione, por via popular.]
S. f.
1. Rel. A concepção da Virgem Maria.
2. Rel. A festa comemorativa dessa concepção.

Gostaria de encontrar a Vozinha hoje, perto do natal, para poder dizer: a senhora não é uma concepção qualquer. É a concepção da Virgem Maria, Vozinha.

Salaam
Layla