sexta-feira, janeiro 27, 2012

Da arte de dar nome ao que não tem nome, pois assim saberemos que existe.

Tenho ciúmes
Das verdes ondas do mar
Que teimam em querer beijar
Teu corpo erguido às marés

Tenho ciúmes
Do vento que me atraiçoa
Que vem beijar-te na proa
E morre pelo convés

Tenho ciúmes
Do luar da lua cheia
Que no teu corpo se enleia
Para contigo ir bailar

Tenho ciúmes
Das ondas que se levantam
E das sereias que cantam
Que cantam pra te encantar

Ó meu amor marinheiro,
Ó dono dos meus anelos,
Não deixes que à noite a lua

Roube a cor aos teus cabelos

Não olhes para as estrelas
Porque elas podem roubar
O verde que há nos teus olhos
Teus olhos, da cor do mar.

(Carminho, "Meu amor marinheiro")

O fado é mesmo uma linguagem que consegue transmutar em palavras coisas que, por sua natureza, são intraduzíveis. Não é música. É uma maneira de enfiar-se a mão no peito e de lá arrancar tudo o que queria sair e não encontrava caminho.

Desde sempre, assombra-me e fascina-me a mentalidade mítica portuguesa. Não poderia ser de outra forma em se tratando de uma cultura que tem em seu rastro os Lusíadas, com seus seres mágicos a contracenar com os homens. Um povo que trouxe ao mundo as palavras de Pessoa, salgadas de mar e de lágrima. Um lugar onde as mulheres têm conchas no vestido, algas na cabeleira, em cujos xailes as gaivotas vêm pousar(1). Não conheço na história de minha família qualquer ascendência portuguesa. Por que será que algo me imanta a este país, este lugar cujo chão meus pés desconhecem?

Talvez eu seja mesmo uma apátrida. Ou melhor, talvez meu lugar de origem seja esse mundo despido de fronteiras que é o incosnciente coletivo, esse lugar profundo e obscuro, nossa "longa cauda sauriana" onde se encontram as memórias da humanidade inteira. Estas esperiências abissais, numinosas, gigantescas... Só mesmo nesse país sem dono um poema como "Meu amor marinheiro" poderia nascer. O amado não é apenas um simples marinheiro, objetivamente falando. É um homem do Mar, esse mesmo mar salgado de lágrimas das mulheres que ali ficaram, ao observar na falésia os maridos e filhos partirem, "para que fosses nosso, ó mar" (2). Esse mar das tormentas, por onde chegavam os aromas e o pensamento doutras terras. Esse mar de encontros e desencontros que tantos homens sepultou.

Nesse lugar mítico, nesta noite fora do tempo, tudo ganha vida: o corpo do amado é como a embarcação beijada pelas ondas, pelo vento e pela lua cheia. A natureza se personifica e se agiganta e todos voltamos a ser do mesmo tamanho, num sentimento medieval de "unnus mundus", a certeza de que tudo se encadeia e faz parte de um Todo maior. No mar de Carminho, homens, peixes, embarcações, luas, vento, ondas, estrelas - tudo está encadeado, entrelaçado, no colo silencioso da noite, esta nossa mãe escura.

E num momento em que tais coisas poderiam ser apenas sentidas de forma muda, não-verbal, vem-me uma alma portuguesa e me escreve este fado. Traduz o intraduzível, risca o inefável do dicionário... Que é da alma portuguesa dar nome aos sentimentos e nos fazer saber que eles existem.

Salaam
Layla

em português,
Noite.



(1) Desnecessário mencionar que aqui há uma alusão à canção "Maria Lisboa", imortalizada por Amália Rodrigues.
(2) Sei que choverei no molhado ao dizer que se trata de um verso de Fernando Pessoa. Todos já sabem que tomei emprestado...

Esta postagem é dedicada a Camila Oliveira. Não bastasse ser uma grande amiga, foi quem me apresentou a voz de Carminho. :)