domingo, março 08, 2009

8 de Março

Maria, Maria
É um dom, uma certa magia,
Uma força que nos alerta

Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta

Maria, Maria
É o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta

De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas agüenta

Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre

Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria
Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida
(M. Nascimento / F. Brant)
Salaam
Layla
Imagens
Na ordem em que aparecem:
1 - Marla Mossman. Mulher hindu com filha em Lakir Road, India, 1996. Disponível em: http://www.takegreatpictures.com/Articles/Details/
The_Peace_Caravan_Project_in_Northern_Indiaby_Marla_Mossman.fci
2 - Mulheres judias no muro das lamentações.
3 - Ciganas romenas. Disponível em:
4 - Mulher andina com o filho.
5 - Mãe africana.
6 - Índia amamentando um filhote de animal, com o filho no colo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/galeria/images/espanha_india.jpg
7 - Mãe e filho no Japão antigo. Disponível em:
antique-japanese-photo-kimono-woman-mother-child/
8 - Mãe se despede dos filhos em Beirute.
9 - Sebastião Salgado. Disponível em: www.terra.com.br/sebastiaosalgado/

terça-feira, março 03, 2009

Balinhas

Poucas coisas me causam tanto desconforto quanto o calor. Hoje pela manhã eu tinha uma série de afazeres. Pus uma roupa leve, criei coragem e fui me aventurar nos 33 graus que me aguardavam lá fora. Perto da hora do almoço, terminei tudo o que tinha que fazer, e resolvi passar no supermercado perto de minha casa para uma compra rápida. No caminho de volta, sob um semáforo perto do local onde moro, duas velhinhas pequeninas, negras, vendiam balinhas aos motoristas quando o sinal avermelhava.

Perto do meio-dia o sol, a pino, me punha ao ponto de derreter. Mesmo debaixo desse sol todo, uma das velhinhas cantava uma canção alegremente. Pensei em minha vida. Há quanto tempo não me dou ao luxo de cantar uma canção durante o trabalho? Aquela pequena senhora de lenço na cabeça fazia isso e, atrás dela, acompanhava-a o espectro de uma infinidade de mulheres. Havia um navio negreiro, havia um continente inteiro de mulheres que cantavam sob o sol escaldante, semeando campos e carregando filhos, envoltas panos de um colorido vivaz. A voz da pequena senhora me fez escutar a voz de suas parentas, pois todas elas cantavam com aquela mulher, sob aquele semáforo, na penosa tarefa de retirar da compaixão alheia um real em troca de uma pacote de balinhas.

Atravessando a rua, a outra velhinha, que a acompanhava, me ofereceu as balas. Eu não tinha um centavo sequer, e não pude comprá-las. Agradeci com um sorriso, e ela sorriu-me de volta numa resignação que me trincou os ossos. Quando cheguei em casa, bebi água como se tivesse atravessado o deserto, e me pus imediatamente a pensar naquelas duas senhoras pequeninas. Há quanto tempo estariam sem beber água... Desci a rua correndo, passei numa conveniência e comprei uma garrafa d’água grande. Fui ao encontro da senhora que me oferecera as balinhas, com a garrafa em mãos e mais um real para os doces. Expliquei-lhe que eu havia imaginado que, àquela altura do dia, debaixo daquele calor, elas deveriam estar com muita sede. Pedi-lhe que dividisse a água com sua colega cantora. Pedi-lhe também um pacotinho de balas.

A senhora não tinha os dentes conservados, mas tinha um sorriso inexplicável. Me olhou como uma avó olha uma neta, em sua relação maternal duplicada, e disse: “meu Deus, que amor que você é.” Disse-me que ia beber a água imediatamente. Antes de eu partir, me olhou com profunda sinceridade: “Deus te abençoe, minha filha”. Senti, realmente, que as palavras da mulher tinham algo de muito poderoso, pois voltei para casa sorrindo por dentro.

Por um instante, veio-me à cabeça o trecho final do filme “O Auto da Compadecida”, que gosto muito. Uma personagem, Rosinha, divide o único pedaço de pão que carrega com um pedinte à beira do caminho, e justifica-se: “às vezes, Deus se veste de mendigo para testar a piedade dos homens.” Eu acrescentaria que Deus também vende balinhas no semáforo. Obviamente, não fiz nada demais em oferecer água àquela senhorinha. Foi ela quem fez por mim: em troca da água, botou-me uma luz nos olhos que se derramou pelo resto do dia.

Salaam
Layla