quarta-feira, fevereiro 08, 2006

1939

Olhando o porta-retrato, a mulher se emociona. Sente-se tomada por uma ternura colossal e assustadora, como se a vertigem dos anos lhe imprimisse mais e mais expressão no olhar a cada dia. A foto amarelada e velha, em preto e branco, não permite que se distingam as cores diferentes do paletó e do chapéu que ele usava. Não importa, ela pensava. Ela se lembra das cores, no porta-retrato da memória, muito mais fidedigno que aquele em que a foto repousava inerte. As lembranças não eram inertes. Em sua mente, a imagem da foto ganhava vida e colorido. Na foto a cor dos olhos dele ficavam vagas. Em sua memória, a cor dos olhos era única, e tingia tudo o que havia em volta.

Lembra-se da primeira vez em que botou nos olhos dele seus olhos ocres. Olhos ocres e imensos – não só no tamanho, mas no amor, na intensidade. Olhos herdados de sua terra, que deixara ainda criança, o Líbano. A casa que deixara vem à memória, o cheiro das especiarias, de zatar, de azeite no pão quente. Não sabia o que encontraria quando aquele navio aportasse. Encontrou um par de olhos claros. Tão diferentes daqueles que ela conhecia. Era tão difícil conversar em línguas diferentes, ela se lembra. Mas lembra-se também que as conversas mais importantes que tiveram não dependiam da linguagem falada. Lembra-se de que as frases mais preciosas foram trocadas entre aqueles olhos ocres e aqueles olhos claros, na profundidade do silêncio que tudo cristaliza. Foi aí que aprendeu que as palavras são desnecessárias. Havia o segurar de mãos, havia o abraço.

A mulher ajeita os cabelos, ainda tão longos, como nos tempos de moça. Hoje, amarrados numa presilha. Ainda tão negros. Aproxima as mãos do porta-retrato, segura-o. Na foto, ele não sorri abertamente. Sorri com os olhos. Sorri para ela. Ela sorri também, de volta. Lembra-se de uma velha canção árabe que dizia: “moço bonito da região de Saidi, seu nome está escrito na palma da minha mão”... “Yaa hulwe yaa zain”, ela se lembra. E lá está o nome dele, na palma das mãos dela. O nome que só ela enxerga, e que foi ali impresso pelo calor de outras mãos.

Como um amor pode durar por tantos anos? E não apenas durar, mas conservar-se intacto: ela se lembra da primeira vez que o viu como se fosse ontem. Ela se lembra de todos os detalhes. Ele não se lembra, a não ser dos olhos dela que o fitavam, brilhando. Brilhando como não brilharam até aquele dia. Brilhando como brilhavam agora, a naufragar nos olhos dele através da fotografia.

Ele abre a porta de casa, e a vê com a foto nas mãos. Nesse instante, fitar os olhos da mulher é retornar ao passado, e consumir-se naquela cena que a adaga do tempo não feriu. Os olhos da moça são vistos através dos olhos daquela mulher madura, e são hoje ainda mais profundos e eloqüentes que antes. Os olhos vítreos que a mulher fita também não perderam a imensidão de outrora. Ainda são mar.

O homem traz uma pequena flor. “Trouxe para você, Zahra”.

Zahra é seu nome. Zahra. “Flor”, em árabe.


Salaam
Layla

1 Pitacos:

Blogger Carlota e a Turmalina falou...

Lindo demais prá comentar...
O silêncio neste caso é sagrado!

2/12/2006 12:31:00 AM  

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