terça-feira, março 03, 2009

Balinhas

Poucas coisas me causam tanto desconforto quanto o calor. Hoje pela manhã eu tinha uma série de afazeres. Pus uma roupa leve, criei coragem e fui me aventurar nos 33 graus que me aguardavam lá fora. Perto da hora do almoço, terminei tudo o que tinha que fazer, e resolvi passar no supermercado perto de minha casa para uma compra rápida. No caminho de volta, sob um semáforo perto do local onde moro, duas velhinhas pequeninas, negras, vendiam balinhas aos motoristas quando o sinal avermelhava.

Perto do meio-dia o sol, a pino, me punha ao ponto de derreter. Mesmo debaixo desse sol todo, uma das velhinhas cantava uma canção alegremente. Pensei em minha vida. Há quanto tempo não me dou ao luxo de cantar uma canção durante o trabalho? Aquela pequena senhora de lenço na cabeça fazia isso e, atrás dela, acompanhava-a o espectro de uma infinidade de mulheres. Havia um navio negreiro, havia um continente inteiro de mulheres que cantavam sob o sol escaldante, semeando campos e carregando filhos, envoltas panos de um colorido vivaz. A voz da pequena senhora me fez escutar a voz de suas parentas, pois todas elas cantavam com aquela mulher, sob aquele semáforo, na penosa tarefa de retirar da compaixão alheia um real em troca de uma pacote de balinhas.

Atravessando a rua, a outra velhinha, que a acompanhava, me ofereceu as balas. Eu não tinha um centavo sequer, e não pude comprá-las. Agradeci com um sorriso, e ela sorriu-me de volta numa resignação que me trincou os ossos. Quando cheguei em casa, bebi água como se tivesse atravessado o deserto, e me pus imediatamente a pensar naquelas duas senhoras pequeninas. Há quanto tempo estariam sem beber água... Desci a rua correndo, passei numa conveniência e comprei uma garrafa d’água grande. Fui ao encontro da senhora que me oferecera as balinhas, com a garrafa em mãos e mais um real para os doces. Expliquei-lhe que eu havia imaginado que, àquela altura do dia, debaixo daquele calor, elas deveriam estar com muita sede. Pedi-lhe que dividisse a água com sua colega cantora. Pedi-lhe também um pacotinho de balas.

A senhora não tinha os dentes conservados, mas tinha um sorriso inexplicável. Me olhou como uma avó olha uma neta, em sua relação maternal duplicada, e disse: “meu Deus, que amor que você é.” Disse-me que ia beber a água imediatamente. Antes de eu partir, me olhou com profunda sinceridade: “Deus te abençoe, minha filha”. Senti, realmente, que as palavras da mulher tinham algo de muito poderoso, pois voltei para casa sorrindo por dentro.

Por um instante, veio-me à cabeça o trecho final do filme “O Auto da Compadecida”, que gosto muito. Uma personagem, Rosinha, divide o único pedaço de pão que carrega com um pedinte à beira do caminho, e justifica-se: “às vezes, Deus se veste de mendigo para testar a piedade dos homens.” Eu acrescentaria que Deus também vende balinhas no semáforo. Obviamente, não fiz nada demais em oferecer água àquela senhorinha. Foi ela quem fez por mim: em troca da água, botou-me uma luz nos olhos que se derramou pelo resto do dia.

Salaam
Layla

5 Pitacos:

Blogger Layla falou...

Este comentário foi removido pelo autor.

3/07/2009 01:05:00 AM  
Blogger Giane falou...

"Os presentes mais preciosos da Vida vêm muitas vezes nas mais simples embalagens. Mas, não menos belas e valorosas."

Beijos mil, Amiga na Mente, nas Palavras e no Coração.

3/09/2009 10:48:00 AM  
Blogger Paula Mello falou...

Oi, Layla, amei teu blog e chorei com esta mensagem porque já passei por isso. Quando um pequeno momento como este, tão precioso, muda nossas vidas, é sinal de que estamos mais maduras e preparadas. Para o quê, Deus há de saber, mas o fato é que estamos prontas.
Um grande beijo, espero vc para um café no meu
http://quintaldapaula.blogspot.com

3/30/2009 11:57:00 PM  
Blogger Lucia Freitas falou...

Layla,
Obrigada, obrigada, obrigada... milhões de vezes obrigada, porque a garrafa d'água chegou aqui, desceu mansa e deu paz.
A humanidade pode - e vai - sobreviver graças a pessoas como você.
beijo

3/31/2009 10:46:00 PM  
Blogger Michelle Rocha falou...

Oi Layla, sempre visito seu blog quando me sobra um tempinho e seus textos são lindos. Esse, em especial, me emocionou. Beijo

4/17/2009 05:07:00 PM  

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